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ENSAIOS
A Música Luminosa e Perspicaz de György Ligeti
Autor:Alex Ross
21/mar/2023
György Ligeti em seu estúdio em Hamburgo, Alemanha, 1982.

As dificuldades dos compositores de vanguarda pareciam intransponíveis. Para continuar sua busca pelo “moderno” era preciso chegar à beira do absurdo; e retroceder ao passado era admitir o fracasso. Numa palestra realizada em 1993, György Ligeti fez a seguinte descrição:

 

Quando a gente é aceito num clube, sem querer ou sem perceber assume certos hábitos em relação ao que está por dentro e ao que está por fora. Tonalidade está sem dúvida por fora. Compor melodias, mesmo melodias não tonais, era um tabu absoluto. Ritmo periódico e pulsação eram tabus, não possibilidades. A música tem de ser um a priori [...] Funcionou enquanto era nova, mas ficou estagnada. Agora não existem tabus; tudo é permitido. Mas não se pode simplesmente voltar à tonalidade, não é o caminho. Precisamos encontrar um caminho que não retroceda nem permaneça na vanguarda. Estou numa prisão: um muro é a vanguarda, o outro é o passado, e eu quero fugir.

 

Ligeti conseguiu fugir ao não dizer não. Ele se abriu a todo o passado musical e ao presente, absorvendo tudo, desde as missas renascentistas de Johannes Ockeghem aos solos de saxofone de Eric Dolphy, das virtuosas composições para piano de Liszt à polifonia rítmica das tribos de pigmeus africanos. Ao mesmo tempo, conseguiu imprimir sua personalidade espinhosa, melancólica e sempre inquieta a tudo que caiu na sua rede.

 

Muitos compositores do início do período da vanguarda testemunharam acontecimentos horríveis na juventude. O que Ligeti viu com seus próprios olhos é quase inimaginável. Ele nasceu em 1923 na Transilvânia, de uma família de judeus húngaros. Três anos antes de seu nascimento, a Transilvânia se tornou parte da Romênia, e Ligeti foi estudar num conservatório em Cluj, que já se chamara Kolozsvár. Em 1949, o governo fascista da Hungria recuperou o controle da Transilvânia, e Cluj tornou-se Kolozsvár outra vez. Em 1944, Ligeti foi mobilizado para uma turma de trabalhos forçados, usando a braçadeira amarela exigida pela regulamentação antissemita, transportando explosivos pesados para a frente oriental. Os nazistas tomaram o país mais tarde naquele ano, e começaram as deportações para os campos de extermínio. Calculando a probabilidade de ser morto em ação, fuzilado pela SS ou enviado para os campos, Ligeti desertou da linha de frente. Caiu em poder das tropas soviéticas, mas conseguiu se safar mais uma vez. Depois de uma longa caminhada para casa, descobriu que os russos haviam assumido o controle e que havia estrangeiros morando na casa de seus pais. Quando a guerra acabou, ele soube do destino de sua família: o pai fora morto em Bergen-Belsen, o irmão, em Mauthausen, e a tia e o tio, em Auschwitz. De alguma forma sua mãe havia sobrevivido. O pesadelo não terminou em 1945. Ligeti foi estudar na Academia Franz Liszt em Budapeste, onde presenciou os soviéticos e seus fantoches tomarem o poder na Hungria; os mesmos brutamontes que haviam cometido atrocidades em nome do Partido da Cruz Flechada, de orientação fascista, foram trabalhar para os comunistas de Mátyás Rákosi.

 

Pierre Boulez, Bruno Maderna e Karlheinz Stockhausen (1957), integrantes do grupo de compositores de vanguarda que ficou conhecido como Escola de Darmstadt, se reuniam ao longo das décadas de 1950 e 1960 durante os cursos internacionais de verão do Instituto de Música Kranichstein de Darmstadt, Alemanha, com o propósito de reinventar a linguagem musical. John Cage (1958) também fez parte do grupo.  

 

Durante a maior parte do tempo, Ligeti conseguiu evitar a odiosa tarefa de criar propaganda para o Partido. Em vez disso, mergulhou em pesquisas de música folclórica, provavelmente ciente de que Bartók havia colecionado canções nos arredores de uma cidade da Transilvânia onde a família de Ligeti morara durante um tempo. Em segredo, Ligeti envolveu-se em composições dodecafônicas, embora sua compreensão do método tivesse sido aprendida a esmo nas páginas de Doutor Fausto, de Mann, que ele leu em 1952. O primeiro movimento de Musica Ricercata, composta de 1951 a 1953, consiste em nada mais do que a nota Lá arranjada em várias oitavas, até um Ré entrar no final. O segundo movimento usa três alturas, o terceiro movimento, quatro, e assim por diante. Todas as doze notas circulam no movimento final, mas ao longo da trajetória o compositor se diverte com uma rica diversidade de material, inclusive uma doce e triste melodia folclórica que ele reviveria décadas mais tarde em Concerto para Violino, obra que seria o sumário de sua carreira. Mais tarde ele definiria algumas notas separadas para esfaquear o segundo movimento como “uma faca no coração de Stálin”.

 

Em 1956, um governo reformista em Budapeste tentou romper o controle soviético, porém tropas de ocupação logo se posicionaram para impedir o levante. Incapaz de enfrentar uma nova onda de repressão, Ligeti fugiu para o Ocidente, escondendo-se debaixo de sacolas de correio num trem postal e depois atravessando a fronteira com a Áustria sob a luz de sinalizadores militares. Buscou refúgio em Viena, onde formou alianças com líderes da vanguarda da Europa Ocidental. Quando estava na Hungria, Ligeti considerava esses trabalhos símbolos de liberdade criativa — durante uma sangrenta noite em 1956, ele permaneceu grudado numa transmissão radiofônica de Gesang der Jünglinge [Canto dos Adolescentes], de Stockhousen —, e em 1957 começou a aparecer em Darmstadt em companhia de seus heróis. Mas seu íntimo conhecimento da personalidade totalitária o deixou alerta em relação a qualquer ideologia musical com certezas demais quanto à sua retidão. “Eu não gosto de gurus”, declarou certa vez em entrevista, numa discussão sobre Stockhausen. Anos depois ele concedeu uma irritadiça entrevista em que comparou os conflitos de tendências em Darmstadt às lutas de poder nos regimentos nazista e stalinista. “É verdade que não havia pessoas sendo liquidadas”, falou, “mas por certo havia assassinatos de reputações”.

 

Ligeti tendia naturalmente para o extremo absurdo no espectro da vanguarda — a música sobre música de Kagel e Schnebel, o conceitualismo de Cage. Em seu Apparitions [Aparições] de 1960, fagotistas tocam seus instrumentos sem palhetas, os músicos dos metais batem nos bocais com as mãos e um percussionista quebra uma garrafa num caixote forrado de placas de metal (“Não se esqueça de usar óculos de proteção”, aconselhava a partitura). Em 1961 Ligeti interpretou uma peça conceitual de Cage chamada The Future of Music [O Futuro da Música], na qual ele ficou na frente de uma desprevenida plateia enquanto escrevia instruções num quadro-negro: “crescendo”, “più forte”, “silêncio”. O tumulto resultante formava a composição. E em 1962 Ligeti produziu o Poème Symphonique pour 100 Métronomes [Poema Sinfônico para 100 Metrônomos], que, justificando o nome, tinha cem metrônomos de corda tique-taqueando o concerto. Como muitas das brincadeiras de Ligeti, essa também tinha uma séria proposta subjacente. O tom hilariante inicial da cena — um palco para concertos cheio de máquinas antigas inanimadas — dá lugar a uma inesperada complexidade: à medida que os metrônomos mais rápidos param quando a corda chega ao fim, teias de ritmos emergem da nuvem de tiques. Quando balançam seus pequenos ponteiros no ar, os últimos sobreviventes parecem solitários, desamparados, quase humanos.

 

Ligeti e sua assistente Louise Duchesneau na Universidade de Mainz, Alemanha, 1989: Poème Symphonique pour 100 Métronomes.

Impaciente com os clichês do pontilhismo musical, com o que chamava de modelo de “evento – pausa – evento”, Ligeti resolveu restaurar as linhas espaçosas e de longa duração da composição instrumental. Para isso, inspirou-se em Metastaseis, de Xenakis, Carré [Quadrado], de Stockhausen, e em outros exemplos da “música textural” do final dos anos 50. Uma das características técnicas de Ligeti é chamada de micropolifonia: grandes estruturas que crescem a partir de um zunido como o de um inseto, cada instrumento tocando a mesma composição no seu próprio ritmo. O som aflora primeiro na última parte de Apparitions e se cristaliza na famosa Atmosphères [Atmosferas], de 1961. O acorde de abertura desse último trabalho tem 59 notas distribuídas por cinco oitavas e meia: o efeito é um sedutor limiar para um mundo exótico, mais misterioso que agressivo. Depois, entidades quase conhecidas, acordes quase tonais, ou criptotonais, são vislumbradas na bruma sônica. O processo dominante na música de Ligeti é o da emergência — formas emergindo das sombras, a escuridão cedendo à luz.

 

Criado como ateu, Ligeti nunca aceitou nenhuma doutrina religiosa. No entanto, em meados dos anos 60, compôs dois trabalhos de impacto revelador de influência religiosa: Réquiem, para dois solistas, duplo coral e orquestra, e Lux Aeterna, para dezesseis vozes solo. São diferentes de quaisquer outras peças sacras anteriores. Réquiem é um espancamento dos sentidos de 25 minutos — uma missa negra em que cantores sussurram, murmuram, falam, gritam e berram o texto da peça. Na “Kyrie”, a sobreposição de vozes individuais em estilo micropolifônico cria o efeito de um uivo subumano, de almas derretendo numa multidão infernal. Na “Lacrimosa” de encerramento, as harmonias dissonantes perdem seu aspecto diabólico e remetem à música das esferas: um Sol Bemol se espalha por uma ampla série de intervalos até um murmúrio primordial de uma quinta aberta em Ré e Lá. Coincidência ou não, parece existir uma transformação semelhante em Apocalipsis cum Figuris, de Adrian Leverkühn, em que um trecho do coral passa “por todas as matizes de sussurro gradual, discurso antifônico e quase canto para subir até a canção mais polifônica — acompanhada por canções que começam como simples ruídos, como tambores africanos mágicos e fanáticos e gongos ressonantes, apenas para chegar à mais alta música”. O platô da “mais alta música” é mantido em Lux Aeterna e em sua companheira orquestral, Lontano [Distante]. Ambos os trabalhos têm características de objetos ocultos, ou de paisagens oníricas em que o som se transforma numa superfície tangível. Na abertura de Lontano, frases micropolifônicas se esgueiram para cima na região mais aguda da orquestra, depois param à beira de um abismo: um explosivo Dó agudo dá lugar a um Ré Bemol grave quase inaudível na tuba e no contrafagote. No meio da peça a harmonia gravita em direção ao tom de Sol Menor, e a orquestra executa um hino fantasmagórico que lembra vagamente o lamento da abertura de Paixão Segundo São Mateus, de Bach. Há uma segunda e desesperada onda no agudo, seguida por um segundo e vertiginoso colapso, mas agora o ouvinte é levado em frente para um paraíso tonal secreto de quase-resoluções e quase-cadências. A bem-aventurada harmonia ao estilo de Messiaen parece ao alcance, mas os metais a afastam com um acorde grasnado e pesaroso. Tríades se espalham pela partitura nas páginas finais, mas são eclipsadas e encobertas de uma forma que mal se pode ouvi-las. O que acontece no fim pode ser ouvido quase como um “Amém” cadenciado.

 

No início de 1968, poucos meses depois da estreia de Lontano, um amigo americano escreveu a Ligeti com a notícia de que o diretor cinematográfico Stanley Kubrick havia lançado um épico de ficção científica intitulado 2001: Uma Odisseia no Espaço, no qual eram ouvidas nada menos que quatro partituras de Ligeti — Réquiem, Lux Aeterna, Atmosphères e Aventures [Aventuras]. Embora o diretor não tivesse pedido permissão, e só tenha pago alguma coisa depois de uma demorada batalha judicial, Ligeti expressou admiração pela realização de Kubrick. Réquiem acompanha as diversas aparições do inescrutável monólito negro que representa a invasão de uma inteligência alienígena superior. Quando o astronauta interpretado por Keir Dullea empreende sua jornada final para o além, a micropolifonia de Ligeti se funde de forma hipnótica com os padrões abstratos de luz de Kubrick e com imagens superexpostas em negativo de paisagens naturais. Entre outras coisas, o filme agrupa com precisão todo o arco da história musical do século XX. Começa com Assim Falava Zaratustra, de Strauss, a música da majestade original da natureza. Na parte final, o filme inclui o universo alternativo de Ligeti, que espirala pelos limites extremos da expressão antes de retornar ao seu ponto de origem. Quando os acordes da magnífica Zaratustra soam mais uma vez no final, o ciclo está pronto para recomeçar.

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Este texto faz parte de “Zion Park: Messiaen, Ligeti e a Vanguarda dos Anos 60”, 13º capítulo de O Resto é Ruído: Escutando o Século XX, do crítico de música da revista The New Yorker, Alex Ross, publicado pela Companhia das Letras em 2009 e gentilmente cedido pela editora para esta publicação. A obra conta a história da música erudita contemporânea de todo século XX e começo do XXI, período em que surgiram concepções musicais como o serialismo, o dodecafonismo e o minimalismo.

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Tradução Claudio Carina e Ivan Weisz Kuck

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GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

 

György Ligeti: Clear or Cloudy — Complete Recordings in Deutsche Grammophon

Deutsche Grammophon, 2006 [4 CDs]

 

The Ligeti Project

Teldec, 2008 [5 CDs]

 

György Ligeti Edition 1: String Quartets and Duos

Arditti String Quartet

Sony Classical, 1996

 

Brahms & Ligeti: Violin Concertos

Orquestra da Radio Norueguesa

Miguel Harth-Bedoya regente

Augustin Hadelich violino

Warner Classics, 2019

 

Bartók, Eötvös, Ligeti

Orquestra Sinfônica da Rádio de Frankfurt

Peter Eötvös regente

Patricia Kopatchinskaja violino

Naïve, 2012