Dos cânions às estrelas...
Ou seja, se elevando dos cânions às estrelas — e mais alto ainda, até os ressuscitados do Paraíso para glorificar Deus em toda a sua criação: as belezas da terra (suas rochas, seus cantos de pássaros), as belezas do céu material, as belezas do céu espiritual. Logo, obra religiosa antes de mais nada: de louvor e contemplação. E também obra geológica e astronômica. Obra de som-cor, na qual circulam todas as cores do arco-íris, em torno do azul do gaio-de-Steller (em inglês, Steller's jay) e do vermelho de Bryce Canyon. Os cantos de pássaros são sobretudo do Utah e das ilhas do Havaí. O céu é simbolizado por Zion Park e a estrela Aldebarã.
A obra resultou de uma encomenda de Miss Alice Tully. Foi composta e orquestrada de 1971 a 1974 depois de uma viagem ao Utah.
A formação orquestral é a seguinte: um piano solo, uma trompa, uma xilorimba, um glockenspiel — madeiras a 4, metais a 3 — apenas 13 cordas (cada uma delas com uma parte diferente, sem dobradura) — e uma percussão muito complexa, com domínio de sinos, gongos, tantãs e a utilização de dois instrumentos inusitados: o eolifone e o geofone (o eolifone imitando o barulho do vento: máquina de vento — o geofone se referindo a barulho de terra: máquina de areia).
PRIMEIRA PARTE
I. O DESERTO
O deserto é o símbolo do vazio da alma que lhe permite ouvir a conversa interior do Espírito. Um tema da trompa evoca a paz do deserto. O eolifone lembra o vento que às vezes lá sopra. Um canto de pássaro é tanto mais precioso por estar cercado de silêncio: é nesse silêncio que ouvimos a "cotovia-do-deserto" (inglês: bifaciated lark), que é uma cotovia do Saara: o crótalo, o piccolo e os sons harmônicos do violino imitam essa voz pura e superaguda.
"Aquele que devemos encontrar é imenso; é preciso ter-se libertado de tudo para dar os primeiros passos em direção a ele... Mergulha no Deserto dos desertos..."
(Ernest Hello)
II. OS ORIOLES
Trupiais ou verdelhões americanos (inglês: orioles) do oeste dos Estados Unidos. Em sua maioria são pássaros de penugem laranja e negra, todos excelentes cantores. Ouvimos aqui o "trupial-do-pomar" (inglês: orchard oriole) no piano solo, o "trupial-de-Scott" (inglês: Scott'Esteban oriole) na xilorimba, o "trupial-de-Lichtenstein" (inglês: Lichtenstein's oriole) nas madeiras e no trompete pequeno, o "trupial-de-Baltimore" (inglês: Baltimore oriole) mais uma vez no piano, o "trupial-de-Bullock" (inglês: Bullock's oriole) também na xilorimba e por fim o "trupial-mascarado" (inglês: hooded oriole) nas madeiras e no glockenspiel.
III. O que está escrito nas estrelas...
"Eis o que está escrito: Mené, Teqil, Parsîn. Mené: medido — Teqél: pesado — Parsîn: dividido."
(Livro do Profeta Daniel — capítulo 5, versículos 25 a 28).
Estas palavras derivam provavelmente de três moedas orientais, talvez fazendo alusão ao valor decrescente dos impérios babilônio, medo e persa. Soam como um decreto da Justiça Divina.
Eu mantive apenas a ideia de número, peso e medida, aplicando-a à disposição das estrelas. As palavras fatídicas são ditas inicialmente por meio de um alfabeto de sons e durações dotados de harmonias fixas. Em seguida, um coral dos metais se opõe a alguns cantos de pássaros. Esses pássaros são: o "solitário-de-Townsend" (inglês: Townsend's solitaire), confiado ao piano solo — o "melro-azul-das-montanhas" (inglês: mountain bluebird), confiado a diversos instrumentos — três víreos: o "víreo-de-Bell" (inglês: Bell's vireo), o "víreo-melodioso" (inglês: warbling vireo), o "víreo-cinzento" (inglês: gray vireo), tocados pela xilorimba, as madeiras e o piano. Também ouvimos: o "tetraz-das-artemísias" (inglês: sage grouse), cujo pio forte se faz ouvir nas artemísias (inglês: sage) do Utah e do deserto de Nevada, e a "cambaxirra-dos-cânions" (inglês: cañon wren), cujo accelerando-rallentando tão característico aparece em várias peças da obra, sempre proclamado pela trompa solo.
As palavras são ditas uma última vez: "A mão que escreveu nas paredes do banquete maldito as três palavras solenes poderia tê-las escrito com calma criadora nas paredes do espaço, por volta do sétimo dia..."
(Ernest Hello)
IV. O COSSIFA-DE-HEUGLIN
Peça para piano solo. O cossifa-de-heuglin (inglês: white-browed robin-chat — latim: Cossypha heuglini) é um pássaro do sudeste da África. É um maravilhoso cantor. Encontraremos aqui todos os aspectos do seu estilo musical: estrofes aflautadas, repetidas 2, 3 e até 4 vezes seguidas — sons suaves e lentos, seguidos de um crescendo-accelerando, ao subir (e o contrário: sons lentos e fortes, seguidos de um accelerando-decrescendo, ao descer) — e também vibrações rufando no grave, que mais parecem trilos de címbalo e de maracas (e mesmo um distante bombo) do que um canto de pássaro. Tudo isto me permitiu escrever para um "piano-pássaro" que é ao mesmo tempo um "piano-orquestra". Para os accelerando-crescendo (ou decrescendo), usei os meus "modos de transposição limitada": o modo seis 2 (marrom, ruivo, laranja, violeta), o modo três 2 (cinza e ouro) e a superposição do modo dois 3 (verde) ao modo quatro 3 (amarelo e violeta). No caso das estrofes aflautadas repetidas, o timbre é produzido por meio de acordes de "inversão transposta" e "ressonância contraída" que aumentam ainda mais o leque de cores.
V. CEDAR BREAKS E O DOM DO TEMOR
"Trocar o medo pelo temor abre uma janela para a adoração."
(Ernest Hello — "Palavras de Deus").
Cedar Breaks é uma das maravilhas do Utah. Menos imponente e vivamente colorido que Bryce Canyon, é ainda assim muito impressionante por sua beleza selvagem. É um vasto anfiteatro, descendo na direção de um abismo profundo, cujas rochas laranja, amarelo, marrom e vermelho se sobrepõem em muralhas, colunas, torres, torreões, calabouços. As bétulas, os pinheiros, um resto de neve e o vento soprando violentamente aumentam ainda mais a grandiosidade do lugar. Esse conjunto me inspirou um sentimento comparável ao "Temor". O "Dom do Temor" é um dos sete dons do Espírito Santo, e a Sagrada Escritura nos diz que "o Temor é o começo da Sabedoria". Na escala dos sentimentos, o medo do castigo se situa bem baixo — o temor (que é a reverência ao sagrado, à presença Divina) é mais nobre, e conduz à adoração, que fica lá no alto.
INTRODUÇÃO. Ao poderoso pio do "pica-pau rosado" (inglês: red-shafted flicker) sucedem-se os borborigmos graves do "tetraz-azul" (inglês: blue grouse), confiados ao trombone baixo, ao contrafagote (os violoncelos e o contrabaixo esfregando a borda do cavalete). O vento sopra: trompete tocado apenas na embocadura com os crescendo-decrescendo do eliofone.
ESTROFE. No tutti, com o mesmo alfabeto de sons e durações que na terceira peça, invocações gregas: Agios o Theos (Santo, ó Deus!), Agios ischyros (Santo e forte!), Agios athanatos (Santo imortal!). Seguem-se um efeito de trompete com surdina wa-wa misturada aos blocos (temple-blocks) e os trilos superagudos da "andorinha-de-garganta-branca" (inglês: white-throated swift) que voa por cima do abismo.
Outro habitante de Cedar Breaks: o "quebra-nozes-de- Clark" (inglês: Clark’s nutcracker), pássaro cinzento com asas e cauda negras e brancas, que vocifera na floresta: seus pios afiados são confiados às articulações e tremolos de língua dos metais, à requinta (dentes na palheta). Depois vem o "melro-migratório" (inglês: american robin), pássaro cinzento de peito vermelho-tijolo encontrado em toda parte nos Estados Unidos (até em Cedar Breaks!): seus alegres "torculus" e "porrectus" são traduzidos por flautas e clarinetas, com tremolos em harmônicos do contrabaixo (tocado com a parte de metal do arco).
DUAS ANTIESTROFES perfilam os mesmos elementos.
EPODO. É um desenvolvimento sobre o barulho do vento, no qual se ouvem aqui e ali pios e cantos de pássaros: o gavião-de-cauda-vermelha (inglês: red-tailed hawk) no trompete e o pardal-raposa (inglês: fox sparrow) na xilorimba.
CODA, retomando elementos da Introdução em ordem retrógrada: o vento — o "tetraz-azul" (inglês: blue grouse), os pios do "pica-pau-rosado" (inglês: red- shafted flicker) pelo tutti da orquestra.
SEGUNDA PARTE
VI. CHAMADO INTERESTELAR
"Ele cura os corações despedaçados e cuida dos seus ferimentos; Ele conta o número das estrelas e chama cada uma por seu nome."
(Salmo 146, versículos 3 e 4)
"Ó terra, não cubras meu sangue, não encontre meu clamor um lugar de descanso."
(Livro de Jó, capítulo 16, versículo 18)
É um solo de trompa. INTRODUÇÃO com diferentes efeitos característicos do instrumento: trilos em sons fechados, tremolos de língua e oscilações de altura num som longo, destimbrado e irreal. Ouve-se também uma curta estrofe do "Hoamy" ou "turdo-de-Pequim" (inglês: chinese thrush).
CANÇÃO, primeira frase.
Depois os pios se fazem ouvir no silêncio. Glissando nos sons harmônicos de ré. Accelerando-rallentando da "cambaxirra-dos-cânions" (inglês: cañon wren), pela segunda vez em toda a obra. A trompa adota o dedilhado de trompa em ré, retomando sua função original: trompa de caça. Seus apelos se tornam cada vez mais roucos e dilacerantes: nenhuma resposta! os apelos caem no silêncio... no silêncio talvez haja uma resposta que é a adoração...
CANÇÃO, segunda frase.
CODA, retomando os elementos da Introdução em ordem diferente.
VII. BRYCE CANYON E AS ROCHAS VERMELHO-LARANJA
"As coisas temporais não serão apagadas, mas assumidas na eternidade."
(Romano Guardini — "A Missa", capítulo 26: A Hora e a eternidade)
"... tereis condições para compreender a altura e a profundidade..."
(São Paulo — Epístola aos Efésios — capítulo 3, versículo 18)
"Os alicerces da muralha da cidade são recamados com todo tipo de pedras preciosas: o sexto alicerce é de cornalina (vermelho), o nono de topázio (amarelo alaranjado), o décimo segundo de ametista (violeta)."
(Apocalipse de São João — capítulo 21, versículos 19-20)
Bryce Canyon é a maior maravilha do Utah. Trata-se de um gigantesco anfiteatro de rochas vermelhas, laranjas, violetas, de formas fantásticas: castelos, torres quadradas, torres barrigudas, janelas naturais, pontes, estátuas, colunas, cidades inteiras, e de vez em quando um buraco negro e profundo. É possível admirar do alto a floresta de pedra e areia petrificada (altitude: 2.500 metros aproximadamente) ou descer ao fundo dos abismos e caminhar sob as arquiteturas feéricas. Eis um magnífico pássaro: o "gaio-de-steller" (inglês: Steller’s jay): o ventre, as asas e a longa cauda são azuis — a cabeça e a poupa são negras. Quando ele voa por cima do cânion, o azul do seu voo e o vermelho das rochas oferecem o esplendor dos vitrais góticos. A música da peça tenta reproduzir essas cores. A forma é próxima das tríades gregas: Estrofe — Primeira Antiestrofe — Segunda Antiestrofe — Epodo (que contém uma cadência do piano solo e a Coda).
ESTROFE. No piano solo: o "melro-negro-de-cabeça-amarela" (inglês: yellow-headed blackbird). Pelo reco-reco e as articulações dos metais: o "gaio-de-steller" (inglês: Steller’s jay). Pela xilorimba e o conjunto das madeiras: o "sanhaço-ocidental" (inglês: western tanager). No piano solo: o "trupial-de-Scott" (inglês: Scott's oriole). Depois o tema maciço das rochas vermelho-laranja pelas madeiras e os metais. Acordes de "ressonância contraída" (vermelho e laranja), o modo três 1 (laranja e ouro) e acordes de "inversão transposta" (amarelo, malva, vermelho, branco e negro) reproduzem as cores da pedra. Outro tema (rítmico) nas cordas. Sonoridades de sino. Pausa num si bemol (harmonizado em "ressonância contraída", vermelho, carmim, amarelo e negro). Polimodalidade superpondo o modo três 4 (laranja com riscas vermelhas) ao modo seis 2 (marrom, ruivo, alaranjado, violeta). Portas e abismos de sombra, profundezas e terrores abissais, com tantã e sons-pedais dos trombones.
PRIMEIRA ANTIESTROFE. Mesmos elementos. Antes de nova polimodalidade e novo abismo de sombra, pausa num mi (harmonizado em "ressonância contraída", branco, ouro, cinza prateado).
SEGUNDA ANTIESTROFE. Mesmos elementos. O "trupial-de-Scott" (inglês: Scott's oriole) no piano solo é mais desenvolvido. O tema das rochas vermelho-laranja é em cânone retrógrado, entre as madeiras e os metais, por um lado, e por outro as cordas e os crótalos. Ascensão dos metais em modo três 1 (alaranjado, ouro, branco leitoso), alternando com descida das cordas e da xilorimba em modo quatro 6 (vermelho carmim, púrpura violáceo, malva, cinza rosado). Ouve-se também a "rola-de-asas-brancas" (inglês: white-winged dove) pela trompa, o piano e as cordas.
EPODO. Grande cadência do piano solo no "pássaro-das-cem-línguas" (inglês: mockingbird) e no "trupial-de-Scott" (inglês: Scott's oriole). Coda em estilo de Aleluia de cantochão pelas cordas, com o "sanhaço-ocidental" (inglês: western tanager) nas madeiras e na xilorimba. Conclusão fortissimo nas rochas vermelho-laranja.
TERCEIRA PARTE
VIII. OS RESSUSCITADOS E O CANTO DA ESTRELA ALDEBARÃ
"E até de estrela para estrela há diferenças de brilho. O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos."
(São Paulo, 1ª Epístola aos Coríntios, capítulo 15, versículos 41-42)
"O coração de Jesus será o espaço que vai conter todas as coisas... Tudo será transparência, luz... O amor como estado permanente da criação, a identidade entre o interior e o exterior: eis o que será o céu!"
(Romano Guardini, "O Senhor", último capítulo)
As estrelas cantam. E o Livro de Jó fala das "aclamações dos astros da manhã" (Livro de Jó, capítulo 38, versículo 7). "Aldebarã" é a estrela mais brilhante da constelação de Touro. Seu nome vem do árabe "al-dabarân", que significa "a seguinte", pois essa estrela segue as Plêiades. O texto de São Paulo quer dizer que os "Corpos Gloriosos" ficarão livres dos entraves dos corpos mortais. Também visa suas qualidades (agilidade, clareza) e suas diferentes "glórias". O texto de Guardini acrescenta o amor, fruto da "visão beatífica" do céu.
Toda a peça é uma longa frase das cordas. As harmonias se baseiam nos "acordes de inversões transpostas", nos "modos de transposições limitadas" 2, 3, 4 e 6, mas sobretudo no modo três 3 e na tonalidade de lá maior, que conferem ao conjunto uma sonoridade azul: azul como a safira, o arenito cinzento, certas fluoritas translúcidas, azul como o céu...
Em contraponto, por cima das cordas, vários pássaros: o "turdo-marrom" (inglês: brown thrasher) e o "melro-de- Swalnson" (inglês: Swalnson’s thrush) no piano solo — o "turdo-eremita" (inglês: hermit thrush) no piccolo — o "turdo-de-Wilson" (inglês: veery) no glockenspiel.
A frase sempre é dobrada pelos sons harmônicos do primeiro violino e pelos crótalos. A cada fim de período, os col-legno-gettato superagudos do contrabaixo e os glissandos em harmônicos dos violinos acrescentam suas gotas d'água, seu frufru de seda.
IX. O PÁSSARO-DAS-CEM-LÍNGUAS
É a segunda peça para piano solo. É inteiramente feita de cantos de "pássaro-das-cem-línguas" (inglês: mockingbird).
O "pássaro-das-cem-línguas" (inglês: mockingbird) é o mais famoso pássaro canoro dos Estados Unidos. Seu canto é muito variado. Comporta: curtas fórmulas de chamado, repetidas 2, 3 e até 5 vezes seguidas — notas suaves se acelerando em crescendo — trilos, baterias, rufos prolongados — iambos lentos e fortes, se opondo a pequenos iambos rápidos em série ascendente. Muitas vezes as repetições terminam num rasgo brilhante que sobe vitoriosamente em direção ao agudo. Tudo isso é utilizado ao longo das quatro estrofes que dividem a peça.
Alguns pássaros australianos vêm somar suas cores melódicas e harmônicas às repetições do "pássaro-das-cem-línguas" (inglês: mockingbird). São eles: na primeira e na segunda estrofes: uma breve frase do "sibilante-dourado" (inglês: golden whistler), harmonizada com acordes de "inversão transposta" e "ressonância contraída" — na terceira estrofe: o glissando descendente do "pássaro-lira-soberba" (inglês: superb lyrebird). Na quarta estrofe, depois da peroração do "pássaro-das-cem-línguas" (inglês: mockingbird), a peça conclui com três novos pássaros australianos: a "pega-flauteadora-de-dorso-branco" (inglês: white-backed magpie), o "pássaro-lira-do-príncipe-Albert" (inglês: Prince Albert lyrebird) e o "turdo-cinzento" (inglês: grey thrush).
X. O TURDO-DOS-BOSQUES
"E lhe darei uma pedrinha branca, uma pedrinha na qual está escrito um nome novo, que ninguém conhece, exceto aquele que o recebe."
(Apocalipse de São João, capítulo 2, versículo 17)
"Quando entramos em graça, recebemos do Espírito Santo um nome novo: e esse será um nome eterno."
(Ruysbroeok o Admirável — "A Pedra brilhante")
O "turdo-dos-bosques" (inglês: wood thrush) é ruivo, com o peito branco manchado de negro. Seu canto é um arpejo maior em "porrectus flexus", de timbre claro, alegre, ensolarado. Em geral é antecedido por uma anacruse e seguido de um sussurro mais grave. Eu o confiei ao piccolo e à xilorimba, com glissando de violinos e ressonância de crótalos. Desde o início da peça, ele se reveste de um aspecto simplificado, na trompa solo (tocando em sons fechados). Esse aspecto original está destinado a sair vitorioso sobre o outro. Para mim, o canto do "turdo-dos-bosques" (inglês: wood thrush) simboliza esse arquétipo que Deus desejou para nós na predestinação, que nós deformamos mais ou menos ao longo da vida terrestre e que só se realiza plenamente na nossa vida celeste, depois da ressurreição. Outros turdos cantam ao lado do irmão: o "turdo-de-Wilson" (inglês: veery) no piano solo — o "turdo-eremita" (inglês: hermit thrush) no conjunto das madeiras. Em seguida, o tema simplificado do "turdo-dos-bosques" (inglês: wood thrush) se faz ouvir na trompa e nos trompetes com diferentes surdinas e diferentes colorações de acordes. Momentaneamente perturbado pelos trêmulos de língua das flautas, os harmônicos agudos do contrabaixo, o apelo polimodal em ritmo anfíbraco da "cambaxirra-da-Carolina" (inglês: carolina wren), o tema é ainda mais simplificado. É um segredo de amor entre a alma e Deus: o nome novo é gravado na pedra, o modelo eterno é encontrado.
XI. OMAO, LEIOTHRIX, ELEPAIO, SHAMA
Nas ilhas do Havaí há duas espécies de pássaros: os que nelas habitam desde sempre e pássaros importados de outros países. A peça contém os cantos dos dois tipos (aos quais acrescentei alguns pássaros estrangeiros). É construída sobre dois elementos: um Refrão (tocado pelas trompas) e os cantos de pássaros que ocupam os Episódios. Análise muito resumida:
1) Refrão pelas trompas. 2) Primeiro Episódio. O "Shama" (Índia, Ceilão) (latim: copsychus malabaricus), pelos metais. O "Leiothrix" (China) (latim: leiothrix lutea), pelo piano. O "Kibitaki" (Japão) (latim: muscicapa narcissina — inglês: narcissus flycatcher), pelas quatro clarinetas. 3) Refrão pelas trompas. 4) Segundo Episódio. Mesmos pássaros que no episódio anterior. 5) Refrão, primeira variação. O tema nas trompas. As cordas fazem um contraponto de acordes em três ritmos hindus: râgavardhana (propício ao raga), candrakalâ (a beleza da lua), lakskmiça (a paz de Lashmi). As madeiras adotam os mesmos ritmos em sentido retrógrado com outros acordes e uma outra cor modal. 6) Terceiro Episódio. Mesmos pássaros que anteriormente, aos quais se juntam: a "pega-malgaxe" (Madagascar; latim: Copsychus albospecularis), na clarineta pequena — o "Aoji" (Japão) (inglês: japanese bunting), nas 4 flautas e no glockenspiel — o "tchagra-de-coroa-preta" (Marrocos) (latim: Tchagra senegala cucullata — inglês: bush shrike), no piano. O apelo do "Elepaio" (Havaí) (latim: Chasiempis sandwichensis) interrompe momentaneamente esses contrapontos de pássaros diferentes. O "Alala" (Havaí) (inglês: hawaiian crow) emite suas grasnadas em crescendo-decrescendo. 7) Cadência do piano solo com o "Omao" (Havaí) (latim: Phaeornis obscurus — inglês: hawaiian thrush). O "Omao" é o melhor cantor do Havaí: ainda é encontrado no Havaí e em Kauai. 8) Refrão, segunda variação, com contraponto em valores iguais pelo piano, o glockenspiel, a xilorimba e o bloco. 9) Quarto Episódio. Começa com o tema do "Shama" (Índia, Ceilão) (latim: Copsychus malabaricus), pelos metais. Depois se ouve no piano: o "Hoamy" (China) (português: "turdo-de-Pequim" — inglês: chinese thrush). Depois de um glissando desordenado do trompete (só a embocadura): combinação do "trilhador-das-artemísias" (oeste dos EUA)(inglês: sage thrasher) no piano com o "Kibitaki" (Japão) (inglês: narcissus flycatcher) na xilorimba. O piccolo emite sons superagudos. Novo pássaro vermelho e negro: o "Apapane" (Havaí, Kauai, Oahu, Mauí) (latim: Himatione sanguinea), tocado pela xilorimba. 10) Grande cadência do piano solo, ainda com o "Omao" (Havaí) (inglês: hawaiian thrush). 11) Coda. "Corujão-da-Virgínia" (EUA) (inglês: great horned owl), "picanço-bacoreiro-de-peitilho-negro” (África do Sul) (inglês: bokmakierie). Depois de um derradeiro apelo do "Elepalo" (Havaí) (latim: Chasiempis sandwichensis), as primeiras notas do Refrão se combinam com o tema do "Shama".
XII. ZION PARK E A CIDADE CELESTE
Aqueles que conheceram as muralhas rosas, brancas, malvas, vermelhas e negras, as árvores verdes e o rio límpido de Zion Park descobriram um símbolo do Paraíso. Me lembrando de que a montanha de Sion é sinônimo da Jerusalém celeste, eu fiz como eles. Os elementos dessa peça final são três: 1) Um coral de metais em modo três 2 (cinza e ouro) e 3 (azul e verde), girando em torno da tonalidade de lá maior — 2) Um Carrilhão — 3) Cantos de pássaros ouvidos no oeste dos EUA e especialmente em Zion Park. Principais pássaros utilizados: a maravilhosa "cotovia-ocidental" (Utah) (inglês: western meadowlark), sempre confiada às madeiras e ao piccolo, com uma harmonização multicolorida de acordes de "inversão transposta" — o "papa lazuli" (Zion Park) (inglês: lazuli bunting), encantador pássaro azul celeste e ruivo canela, tocado pelo glockenspiel — o "tentilhão-de-Cassin" (Zion Park) (inglês: Cassin's finch), pássaro vermelho, rosa e marrom cujos rasgos rápidos e melodiosos são executados pelo piano solo. E quatro pássaros extraordinários, que aqui aparecem como que entre parênteses: o "tetraz-das-artemísias" (Utah) (inglês: sage grouse), cujos pios estranhos ocupam tanto o chicote e a conga quanto os cavaletes dos violoncelos e do contrabaixo — o "trilhador-das-artemísias" (Nevada) (inglês: sage thrasher), tocado no piano — a "cambaxirra-dos-cânions" (Idaho, Montana) (inglês: cañon wren), que aparece na trompa solo pela terceira e última vez — o "pyrrhuloxia" (Arizona) (latim: Pyrrhuloxia sinuata), cardeal cinzento frisado de vermelho na poupa, no peito e no ventre, que fornece uma cadência ao piano solo. Muitas vezes o coral dos metais, luminoso e majestoso, interrompeu esses cantos de pássaros. Sobre um acorde de lá maior nas cordas (imutável como a eternidade), os sinos do carrilhão trazem sua ressonância com a alegria final.
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Olivier Messiaen [1908-92] foi um compositor, organista e ornitologista francês. Este texto foi escrito pelo próprio Messiaen como uma introdução à partitura de Des Canyons aux Étoiles [19971-74], obra que a Osesp interpreta nos dias 7, 8 e 9 de novembro, sob regência de Heinz Holliger e com Uli Wiget (piano), Luiz Garcia (trompa), Ricardo Righini (xilorimba) e Eduardo Gianesella (glockenspiel) como solistas. |