Aos 21 anos, Marlos Nobre foi considerado pelo jornal O Globo “uma estrela a quem parece ter Villa-Lobos entregue o cetro da criação musical do Brasil”. Aos 68, foi saudado como o maior compositor vivo da América Ibérica ao receber o VI Prêmio Ibero-Americano Tomás Luis de Victoria, na Espanha. Em homenagem aos 80 anos de Marlos, a Osesp apresenta uma composição inédita feita especialmente para este fim no âmbito do projeto "SP-LX Nova Música".
Sua relação com a Osesp é antiga. Muitas de suas obras orquestrais já foram tocadas pela sinfônica. Como o senhor recebeu a encomenda do "Concerto Para Violoncelo", em celebração aos seus 80 anos?
Recebi, naturalmente, com imenso prazer e alegria essa encomenda da Osesp que, desta vez, abrange um pool de outras quatro orquestras para a estreia mundial do meu Concerto Para Violoncelo, que escrevo agora. É, segundo informação do querido Arthur Nestrovski, um dos dínamos da Osesp, a primeira vez que se faz uma encomenda com tal amplitude por aqui, e isso multiplica a sua dimensão. Também a participação de Antonio Meneses, um dos maiores violoncelistas do mundo da atualidade e querido amigo, completa a proporção dessa encomenda.
Qual é a sua lembrança musical mais antiga? O que o fez optar, definitivamente, pela carreira musical?
O Carnaval do Recife, o desfile das agremiações carnavalescas do Frevo, do Maracatu, dos Caboclinhos, que ocorriam diante da porta da minha casa, no bairro de São José. Foi uma coisa extraordinária e uma grande sorte. Eu escutava e via tudo inebriado; corria para dançar, para me misturar com a massa de foliões, desde os 4 anos de idade. Nos desfiles, o que mais me impressionava era o Maracatu... uma espécie de terror/pânico misturado com fascinação, ao ver e ouvir as batidas violentas desse estilo, marcou para sempre a minha primeira formação. Foi fundamental. A rítmica forte do Carnaval do Recife criou em minha mente o fundamento rítmico de minha música, que eu escreveria depois e, praticamente, até hoje.
Sua obra mistura o regional ao universal, o clássico ao moderno, numa vertente que dialoga com grandes nomes do século passado, mas com acento inconfundivelmente pessoal. Hoje, como o senhor se defi niria musicalmente?
A palavra e a definição que gosto de usar é Pluralidade, em seu sentido mais amplo. Minha mente, tal como uma esponja, foi absorvendo desde muito cedo as impressões musicais mais diversas. Depois do maracatu e do frevo do Carnaval do Recife vieram as impressões das primeiras escutas da música moderna. Gostaria de salientar que isso foi mais forte do que a música dos períodos clássico e romântico; eu fui direto para a modernidade de Stravinsky, Ravel, Debussy, Prokofiev, Hindemith, pois eram meus ídolos. Eu ouvia, com a partitura em mãos, tudo o que estava nos discos da Biblioteca Municipal do Recife. Todas as tardes, dos 14 aos 19 anos eu, sempre que podia, ia lá ouvir todo o acervo da biblioteca. A fascinação maior foi quando pude ouvir A Sagração da Primavera. Naquela época, as peças maiores eram gravadas em dois, quatro ou mais LPs, e eu tinha que imaginar a linha geral da música. Creio que isso teve uma importância enorme em minha formação musical, pois, sem querer, eu elaborava a sequência, em seu todo, de todas as peças. Portanto se posso definir meu estilo de uma maneira muito genérica, mas verdadeira, é como Pluralismo Técnico e Estético. Não me importam os modismos, a gente descobre como tudo isso é vão, inútil. Os extremismos e as modas são a morte da criatividade, a meu ver. As modas estéticas, e até mesmo os charlatães, passam. Houve uma época em que não ser compositor serial era a morte estética. Houve uma verdadeira caça às bruxas, sobretudo no sectarismo de Boulez e seus fanáticos seguidores. Quem não era compositor serial estava, segundo eles, destinado à fossa musical. O tempo provou que esse sectarismo estava errado.
A Orquestra Sinfônica do Recife tem praticamente a sua idade. O senhor começou a frequentar os concertos da OSR no Teatro de Santa Isabel aos 12 anos, e, em 2013, foi nomeado seu Regente Titular. Em 2018, a OSR foi declarada Patrimônio Cultural Imaterial da capital pernambucana. O que o senhor poderia nos dizer sobre essa longa e renovada experiência com a Orquestra Sinfônica do Recife?
Tudo que acontece na minha vida acontece sem qualquer planejamento, é como se certas coisas fundamentais tivessem mesmo que ser. Assim foi com a minha nomeação em 2013, como regente titular da Orquestra Sinfônica do Recife. Isso era algo totalmente fora dos meus planos e projetos. Minha forte ligação sentimental e musical com a OSR, desde os meus 12 anos, quando comecei a frequentar os concertos, creio que tem muito a ver com o que aconteceu. Fui, de repente, convidado pelo prefeito, Geraldo Júlio, e pela secretária de cultura do Recife, Leda Alves, para reger a OSR. Aceitei o convite apenas para dar um rumo à orquestra, que sofria pelo abandono de anos de maus-tratos, tanto na parte musical como funcional. E acabou dando certo. Consegui levantar o moral da orquestra, fizemos ciclos que a OSR jamais havia feito. Executamos todas as sinfonias dos grandes mestres, desde Mozart, Beethoven, Mendelssohn, Schumann até compositores contemporâneos. Nossos concertos estavam sempre com lotação esgotada e o moral dos músicos, evidentemente, logo se reergueu. Esta experiência foi e continua sendo um caminho fértil, pois o fato de reger tantos concertos com tantas obras é, para mim, um imenso estímulo musical e, para os músicos, um desafio. A OSR é a orquestra mais antiga do Brasil, hoje com seus 88 anos de atividade ininterrupta e, ao ser declarada Patrimônio Cultural Imaterial do Recife, conseguimos que seja agora indestrutível. No momento, o processo é de solidifi car o que já conseguimos e projetar a Orquestra Sinfônica do Recife para o futuro.
Como o senhor avalia o momento para a cultura em geral e a música clássica, em particular, no Brasil?
Eu sou um otimista inveterado, mas um otimista realista, com os pés no chão. Acho que, infelizmente, a música clássica, os compositores em geral eram — e praticamente sempre foram — alijados de grandes projetos com apoio cultural. Espero que isso tenha fim.
Entrevista a Claudia Morales
CRONOLOGIA
|1939 |
Nasce em Recife, Pernambuco.
| 1943 |
Começa a estudar piano com sua prima Nysia Nobre, professora respeitada. Filho de violonista amador, frequenta saraus dominicais com o pai.
| 1956 |
Conclui os estudos no Conservatório Pernambucano de Música.
| 1958 |
Conclui os estudos no Instituto Ernani Braga, onde aprende harmonia e contraponto com o musicólogo e padre Jaime Diniz, que o incentiva a compor.
Interessa-se por entender o desprestígio da música popular frente à música erudita e descobre os escritos de Mário de Andrade e as composições de Villa-Lobos e Ernesto Nazareth. Tem acesso a amplo acervo de música contemporânea europeia.
Destrói todas as composições do período de formação, com exceção de Concertino Para Piano e Orquestra de Cordas.
Vence o concurso para solista de piano da Orquestra Sinfônica do Recife.
| 1959 |
Lança-se como compositor com Concertino, Op.1, recebendo menção honrosa no I Concurso Música e Músicos do Brasil, da Rádio MEC.
| 1960 |
Trio Para Piano, Violino e Viola, Op.4 fica em primeiro lugar no II Concurso Música e Músicos do Brasil. A crítica o considera o sucessor de Villa-Lobos.
Estuda composição com Hans-Joachim Koellreutter, em Teresópolis.
| 1961 |
Em São Paulo, torna-se aluno de Camargo Guarnieri.
O contato com as duas maiores estrelas das duas correntes estéticas opostas e dominantes (vanguardista/universalista versus nacionalista) estimula no jovem compositor o desejo de desenvolver uma linguagem pessoal.
| 1963-4 |
Como bolsista da Fundação Rockefeller, aperfeiçoa-se com Alberto Ginastera, Olivier Messiaen, Aaron Copland, Riccardo Malipiero, Bruno Maderna e Luigi Dallapiccola no Instituto Torcuato Di Tella (CLAEM), em Buenos Aires.
| 1966 |
A obra Ukrinmakrinkrin é vencedora na Tribuna Internacional dos Compositores (UNESCO). Outras composições de Nobre vencem novamente em 1968 e 1970.
| 1967 |
Apresenta-se nos principais festivais e instituições norte-americanos, a convite do Departamento de Estado dos Estados Unidos.
| 1969 |
Como bolsista do Berkshire Music Center (Tanglewood, EUA) trabalha com Alexander Goehr e Günter Schüller, e conhece Leonard Bernstein. No fim do mesmo ano, estuda música eletrônica com Vladimir Ussachevsky em Nova York.
Assina a trilha sonora do filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha.
| 1971-6 |
Torna-se Diretor Musical da Rádio MEC, da Orquestra Sinfônica Nacional e do programa “Concertos para a Juventude”, realizado pela Rede Globo.
| 1976-9 |
Primeiro diretor do Instituto Nacional de Música da Funarte.
Passa a compor com frequência para importantes orquestras e instituições europeias e americanas.
| 1980 |
Compositor residente na Brahms-Haus, em Baden-Baden (Alemanha).
| 1981 |
Nomeado vice-presidente do Conselho Internacional de Música da UNESCO. Professor-visitante da Universidade de Indiana (EUA).
| 1982 |
Eleito para a Academia Brasileira de Música, ocupando a cadeira nº 1.
Convidado para o programa Deutscher Akademischer Austauschdfienst (DAAD), em Berlim, como compositor-residente.
| 1985 |
Compositor-residente em Nova York com a bolsa Guggenheim.
Eleito, por unanimidade, presidente do Conselho Internacional de Música da UNESCO.
| 1986 |
Assume a presidência da Academia Brasileira de Música (ABM).
| 1989 |
É condecorado como Oficial na Ordem de Rio Branco (Itamaraty).
| 1990 |
Torna-se o primeiro brasileiro a reger a Royal Philharmonic Orchestra, de Londres.
| 1992 |
É professor-visitante da Universidade de Yale. Passa a ser convidado por outras universidades americanas e pela conceituada Juilliard School, de Nova York.
| 1994 |
Recebe, na França, o título de Offi cier dans l’Ordre des Arts et des Lettres.
| 1995 |
Lança CD com obras orquestrais, vocais e camerísticas pelo selo suíço Léman.
| 2000 |
Ganha a medalha Thomas Hart Benton da Indiana University e o título de professor honorário da Texas Christian University.
| 2006 |
Saudado como o maior compositor vivo do continente ibero-americano ao receber o VI Prêmio Ibero-Americano Tomás Luis de Victoria, na Espanha.
| 2010 |
Recebe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Pernambuco.
| 2013 |
Torna-se regente titular e diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Recife, a mais antiga orquestra em atividade ininterrupta do Brasil.
Escreve Sacre du Sacre, sob encomenda da Osesp, em comemoração ao centenário de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky.
| 2016 |
Kabbalah (2004), com a Osesp regida por Marin Alsop, é apresentada no Festival de Lucerna e no Festival BBC Proms, onde é aplaudida por mais de seis mil pessoas.
| 2019 |
Estreia mundial do Concerto Para Violoncelo na Sala São Paulo, no âmbito do projeto SP-LX Nova Música, em celebração aos 80 anos do compositor. Encomenda da Osesp, num consórcio inédito de orquestras, a obra será tocada posteriormente em Belo Horizonte (pela Filarmônica de Minas Gerais), Goiânia (pela Filarmônica de Goiás), Rio de Janeiro (Petrobras Sinfônica) e ainda Lisboa (pela Orquestra Gulbenkian), com o violoncelista Antonio Meneses em todas as apresentações.
GRAVAÇÕES RECOMENDADAS
POEMA (obra completa — até 2012 — de Marlos Nobre para violoncelo)
Leonardo Altino, violoncelo
CD independente, 2012
Pode ser ouvido e baixado em: virtuosi.com.br/poema/.
Marlos Nobre: Piano Music
Clelia Iruzun, piano
Lorelt, 2013
Yanomami — Music For Choir and Guitar
Coro Cervantes
Fabio Zanon, violão
Signum Classics, 2009
Nobre: Orchestral, Vocal and Chamber Works
Godoy, Moura Castro et al.
Musica Nova Philharmonia
Musica Nova Ensemble
Ensemble Percussion de Genève
Marlos Nobre, regente
Léman Classics, 1995
International Rostrum of Composers 1955-1999
(Biosfera, 1970. Orquestra de Câmara da Rádio MEC)
Q-Disc, 2000
6 CDs compilados pela Fundação Donemus (Holanda) e pelo International Music Council (IMC) para a Tribuna Internacional de Compositores (IRC) 2000.
Foto: Marlos Nobre. Crédito: Maria Luiza Nobre. |