Mozart Camargo Guarnieri nasceu em 1907 em Tietê (SP). O pai, imigrante italiano e entusiasta da música, não só batizou os filhos homens em homenagem a grandes compositores (Mozart, Verdi, Rossine e Belline — assim mesmo, com “e”), como não hesitou em mudar para a capital em 1922, buscando melhor orientação para o talento do filho mais velho, que aos 13 anos já ensaiava suas primeiras composições.
Em São Paulo, Guarnieri conheceu Mário de Andrade em 1928, ano em que o poeta publicou o Ensaio sobre a música brasileira, obra que se tornou referência estética no cenário musical de nosso país. No primeiro contato, Guarnieri apresentou duas peças compostas sob orientação do regente italiano Lamberto Baldi; Mário de Andrade ficou impressionado, sobretudo com os elementos nacionais latentes naquelas obras, e ofereceu-se para orientar o jovem compositor em sua formação estética e cultural. A chamada Escola Nacionalista Brasileira surge em decorrência desse encontro. Além de compor com essa orientação estética, Guarnieri também exerceu sistematicamente o ensino da composição, formando algumas gerações de compositores.
Dentre as ideias propostas por Mário de Andrade está a questão do abrasileiramento do ato de compor e de pensar a música de acordo com a realidade nacional. Uma de suas reflexões é justamente sobre o aproveitamento de formas musicais brasileiras na música de concerto:
Imagine-se por um exemplo uma Suíte:
1_Ponteio (prelúdio em qualquer métrica ou movimento);
2_Cateretê (binário rápido);
3_Coco (binário lento), (polifonia coral), substitutivo de Sarabanda;
4_Moda ou Modinha (em ternário ou quaternário), substitutivo da Ária antiga;
5_Cururu (pra utilização de motivo ameríndio), (pode-se imaginar uma dança africana pra empregar motivo afro-brasileiro),(sem movimento predeterminado);
6_Dobrado (ou Samba, ou Maxixe), (binário rápido ou imponente final).
[...]
E já que estou imaginando em peças grandes, é fácil evitar as formas de Sonata, Tocata etc. muito desvirtuadas hoje em dia […].1
Tal idealização nacionalizada foi incorporada em muitas obras de Guarnieri. O título das obras e dos movimentos muitas vezes expressa sua intenção de fazer referência à cultura musical brasileira, mesmo que a linguagem musical não o faça diretamente: seus Choros para instrumento solista e orquestra não são adaptações diretas do gênero popular. Guarnieri justifica o título dizendo que: “Choro está substituindo concerto”.
Em 1950 Camargo Guarnieri publicou uma Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil, defendendo os “verdadeiros interesses da música brasileira”. Nessa defesa, a carta ataca veementemente a “orientação atual da música dos jovens compositores que, influenciados por ideias errôneas, se filiam ao dodecafonismo”.2 A violência dessa Carta surpreende, já que boa parte de sua crítica se volta diretamente contra Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), músico alemão radicado no Brasil desde 1936, com quem Guarnieri manteve boas relações até meados dos anos 1940.
Há controvérsias quanto à motivação que teria levado Guarnieri a publicar a Carta, e especialistas como Flávio Silva e Lutero Rodrigues colocam em dúvida até mesmo a autoria da mesma, levando em consideração o contexto — o teor da Carta reproduz elementos da orientação estética do Partido Comunista soviético reunido em Praga em 1948 —, já que Guarnieri jamais manifestou interesse por política. Ela teria sido elaborada por seu irmão Rossine, poeta e comunista militante.3 Suspeita-se que a Carta seria uma manifestação de apoio incondicional ao mentor Mário de Andrade, falecido em 1945.
Obras como o Choro Para Violino e Orquestra (1951) trazem essa questão adicional além do dado puramente musical, como se fosse uma espécie de manifesto sonoro daquelas ideias, reiterando e radicalizando conceitos que Guarnieri muito provavelmente considerava como o legado andradiano, o qual seria sua missão preservar.
É notável como o próprio Guarnieri se encarrega de desmentir, ou ao menos reduzir, a importância do teor da Carta; as obras da década de 1960 são exemplarmente contraditórias, como o crítico Caldeira Filho observa em resenha para o jornal O Estado de S. Paulo em novembro de 1965, quando fez estrear sua Seresta Para Piano e Orquestra de Câmara:
“O grande interesse do concerto residia na estreia mundial da Seresta de Camargo Guarnieri, para piano solista, harpa, xilofone, tímpanos e cordas [...], marcadora de nova fase do compositor, caracterizada pela libertação quanto ao nacionalismo e ao tonalismo harmônico […].”4
Desse modo, Guarnieri passou a flexibilizar a expressão de elementos nacionais, mesclando-os livremente com outras informações tomadas de empréstimo da chamada corrente “universalista”. O Choro Para Flauta e Orquestra (1972) flerta livremente com alguns procedimentos caros ao dodecafonismo, porém tratados com liberdade e a serviço da linguagem pessoal do compositor, que emprega até mesmo um cravo para obter uma sonoridade neobarroca na segunda parte da obra.
Essa dicotomia ainda está presente no Choro Para Fagote e Orquestra de Câmara (1991), apesar de ser uma das últimas obras de Guarnieri, que morreu cerca de um ano e meio antes de sua estreia, em julho de 1994. Mesmo nessa obra, escrita em um momento difícil de sua vida pessoal (seu filho Daniel sofreu um acidente e ficou em coma por dois anos, e em seguida o compositor foi diagnosticado com um câncer na garganta),5 Guarnieri reuniu forças para fazer sua afirmação nacionalista e celebrar sua liberdade criativa.
As características do estilo guarnieriano podem ser compreendidas a partir de sua autodefinição: “[...] a forma é minha alucinação. Isto não quer dizer que ela me prende, ao contrário, uso-a a serviço de minha imaginação e expressão”.6
De fato, o aspecto formal é algo bastante saliente na sua música, perceptível pela escuta. Em linhas gerais, a organização se mantém em torno do desenho ternário do tipo A-B-A, onde as ideias são claramente expostas no início, com o tema principal e seus motivos formadores, seguidos de seu próprio desenvolvimento lógico (Guarnieri é um dos grandes mestres do tratamento motívico na música do século XX); vem então uma seção de contraste, e em seguida o retorno ao material inicial. Guarnieri se especializou em extrair o máximo dessa concepção trivial, cinzelando cuidadosamente a harmonia, balanceando o contraponto e trabalhando com máximo interesse a exploração de vozes e instrumentos. Nesse sentido, muitos consideram sua música mais facilmente assimilável que a de Villa-Lobos, com seu gosto pelo caótico; em Guarnieri predomina a vontade de organização, do contorno claro à maneira clássica.
Outro elemento definidor da estética de Guarnieri é seu gosto pela musicalidade nordestina. Indefectivelmente, ouvimos melodias de caráter sertanejo, usando alternadamente os modos lídio e mixolídio e empregando fórmulas melódicas do baião, à maneira de compositores populares como Luiz Gonzaga. Também referência importante em seu estilo pessoal é seu aproveitamento das terças “caipiras”, típicas dos cantores e violeiros do interior paulista, influência de infância que o compositor muitas vezes manifestou e conservou em suas reminiscências artísticas.
O gosto pela música de origem popular estabelece dois modos de expressão típicos de Guarnieri: o estilo “rude”, no qual o compositor cria blocos rítmicos justapostos com violência, e o estilo “calmo”, cujas melodias mais amplas criam paisagens sonoras densas e carregadas de emoção. Dentro dessas categorias, ele é capaz de realizar diversas nuances de caráter, revelando inúmeras facetas do espírito humano exprimíveis por meio dos sons e sua relação com a memória e o afeto. Muitos símbolos sonoros da cultura brasileira encontram sua cristalização na música de Guarnieri.
O conjunto da obra guarnieriana é um patrimônio de riqueza incalculável para a cultura brasileira. É auspicioso o projeto desenvolvido pela Osesp no sentido de tornar esse repertório cada vez mais acessível a um grande público, dentro e fora do Brasil; essa música que, sendo tão regional, é por isso mesmo tão grandiosamente universal e capaz de comunicar e interligar o que de mais humano trazemos dentro de nós, nossa terra, nosso lugar no mundo. Nesse sentido, a música de Guarnieri atinge o mesmo plano que Fernando Pessoa — na voz do heterônimo Alberto Caeiro — atribui aos rios:
[...] poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.7
1ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 4ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006 [1928]. pp. 53-4.
2Guarnieri, apud KATER, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade.São Paulo: Atravez, 2001. p. 119.
3SILVA, Flávio. Camargo Guarnieri e Mário de Andrade. Latin American music review, v. 20, n. 2, p.194, 1999.
4Caldeira Filho, apud SALLES, Paulo de Tarso. Aberturas e impasses: a música no pós-modernismo e seus reflexos no Brasil, 1970-1980. São Paulo: Ed. Unesp, 2005. p. 169.
5Cf. CURY, Fábio. Choro Para Fagote e Orquestra de Câmara: aspectos da obra de Camargo Guarnieri. São Paulo: Tese de Doutorado, ECA/USP, 2011. pp. 38-9.
6Guarnieri, apud TACUCHIAN, in SILVA, Flávio (org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. São Paulo: Imprensa Oficial, 2001.
7PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos. In: Fernando Pessoa, obra poética. Rio de Janeiro, Aguilar, 1986. p. 217.
Foto: Camargo Guarnieri regendo o concerto de estreia da Osusp no então Anfiteatro de Convenções e Congressos, em novembro de 1975. Crédito: Arquio do Instituto de Estudos Brasileiros USP - Fundo Camargo Guarnieri, código do documento: CG-F001-001
PAULO DE TARSO SALLES
É professor de teoria musical na USP, coordenador do Simpósio Villa-Lobos (USP) e editor da Revista Música (USP). Autor de Aberturas e impasses — o pós-moderno na música e seus reflexos no Brasil — 1970-1980 (Ed. Unesp, 2005), Villa-Lobos — processos composicionais (Ed. Unicamp, 2009) e Os Quartetos de Cordas de Villa-Lobos: forma e função (Edusp, no prelo).
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