Francisco Mignone foi um dos inventores da brasilidade na música de concerto brasileira. Mas que brasilidade é essa inventada por ele?
Todas as biografias se demoram na presença de Mário de Andrade. O próprio Mignone reconheceu — mesmo à medida que os anos avançaram — a marca andradeana na construção da sua voz pessoal: em 1947, na autocrítica “A Parte do Anjo”, Mário de Andrade é a corrente subjacente de parágrafos inteiros, vindo à superfície duas ou três vezes.
Em 1968, a referência é explícita: “[...] amparado na cordial e espontânea amizade de Mário de Andrade, embrenhei-me no cipoal da missa nacionalista e, também, para não ser considerado (não sendo compositor nacionalista) uma ‘reverendíssima besta’ — no dizer de Mário de Andrade”.
Já em 1977, Mignone transfere para uma conversa hipotética a frase notória do Ensaio Sobre a Música Brasileira, de quase 50 anos antes: “Mário me mostrou a importância do que é nosso, dizendo aquela célebre frase: ‘O compositor brasileiro que não escreve música nacionalista é uma reverendíssima besta”’.
A intersecção entre Mário de Andrade e a música de Mignone se dá em três momentos definidores. Em 1928, ano do Ensaio, Mário de Andrade arrasa O Inocente, a ópera de Mignone estreada há pouco: “Mas que valor nacional tem O Inocente? Absolutamente nenhum. E é muito doloroso no momento decisivo de normalização étnica em que estamos, ver um artista nacional se perder em tentativas inúteis”.
A mudança de foco de Mignone é imediata e assim, em 1931, a crítica é mais benevolente, na estreia da primeira Fantasia Brasileira: “Me parece que nessa orientação conceptiva, em que a nacionalidade não se desvirtua pela preocupação com o universal, é que está o lado por onde Francisco Mignone poderá nos dar obras valiosas e fecundar sua personalidade”.
No entanto, há nova mudança de humor e, em 1939, o julgamento de Mário de Andrade é áspero: “Francisco Mignone, descobertos os violentos ritmos, as belíssimas formas melódicas, as obsessões dinâmicas dos negros brasileiros, lança-se com uma euforia dionisíaca, com uma volúpia inventiva extraordinária no aproveitamento desse filão. Mas parou honestamente a tempo, porque se o filão negro lhe dera algumas obras principais da nossa música, na verdade era uma riqueza artisticamente muito pobre por causa do seu excesso de caráter. E o compositor sentiu que em breve estaria a ser repetir”.
Num comentário arguto, Jorge Coli é um dos únicos a apontar que a interferência de Mário de Andrade tem tanto de “cordial e espontânea amizade” quanto de subtexto destrutivo: “Assim, depois de ter abafado a serenata italiana que lhe corria nas veias, já que os italianos não fariam parte da trindade racial formadora [portuguesa, negra, indígena], Mário de Andrade extirpa o vigor dionisíaco que Mignone encontrava na poderosa África imaginária que lhe dava forças, para não desequilibrar a sutil dosagem da boa fórmula”.
Hoje, longe das idas e vindas de opinião, das transformações de estilo e das incertezas criativas, se percebe que a música de Francisco Mignone é mais vasta do que as querelas. Na verdade, havia Francisco Mignone antes de Mário de Andrade e houve muito Francisco Mignone depois dele.
Antes foi Chico Bororó, o pseudônimo do compositor das músicas dançáveis dos 1910. Logo surgem a Congada (1921) e as primeiras Lendas sertanejas (a partir de 1923) – sinais iniciais da brasilidade que Alcântara Machado já identifica numa crônica-homenagem a Mignone em Pathé-Baby de 1926: “As notas brasileiras escapam pela janela. No ar verdiano de Milão a harmonia caipira põe um cheiro tropical de mata úmida. Os dedos de Francisco Mignone pintam a noite enluarada, o terreiro fervilhando, a torcida da assistência caipira. Esgrima de sátira e lirismo”.
Essa é a atmosfera das quatro Fantasias brasileiras para piano e orquestra (1929; 1931; 1934; 1936) e, entre elas, a Fantasia brasileira nº 4 é um bom exemplo da brasilidade “à moda Mignone”. Os seus primeiros momentos se afastam da dança e dos ritmos “nativos” mais estereotípicos e, talvez, mais esperáveis. O que se ouve é o delineamento de uma melodia cujo desenho é atavicamente sertanejo. O conteúdo harmônico, no entanto, vem de um profundo conhecimento técnico, sem nenhuma concessão modal. Isso é tanto basilar quanto discordante, pois se pensaria que a sofisticação no encadeamento de acordes — e na própria construção dos acordes — ultrapassa em muito o que seria aceitável para uma música que tem sido elogiada e criticada por querer ser “acessível”.
Do diálogo entre piano e orquestra — melodias “melódicas” e suporte harmônico inusitado, se faz o primeiro parágrafo da Fantasia nº 4. A passagem para o segundo parágrafo é imperceptível e, quando piano e flautim iniciam sua conversa, mal se sabe como se chegou até aqui.
A oxigenação do terceiro parágrafo é anunciada por um solo do piano e surge uma dança desenfreada em direção ao final da peça. Final monumental, quase fora de proporção para uma peça sem a duração do concerto, mas que aproveita os imprevistos e a estrutura flexível da fantasia. O desenho melódico é o marcador de brasilidade na Fantasia, antes do ritmo e da cor orquestral. É a melodia, o “melodismo entusiasmado” como o quer José Eduardo Martins, que empurra os acontecimentos.
O repertório de piano e orquestra foi frequentado muitas vezes por Francisco Mignone. Bem mais tardia, Burlesca e Tocata, de 1958, prolonga essa brasilidade que mistura melodismo, ritmo e profundidade harmônica. Nela, há sinais da distância em relação aos anos formadores, e também dos polêmicos anos 1940 — de Koellreutter e do grupo Música Viva — e das mudanças ideológicas de Mignone.
No seu livro sobre Mignone, Bruno Kiefer cita o comentário de Edino Krieger à estreia de Burlesca e Tocata, em 1975. Krieger assinala “a convivência, nessa obra, de uma temática nitidamente nacionalista, característica de toda a fase de consagração do compositor[,] e de uma linguagem mais atual, comum às suas produções mais recentes. Há uma espécie de síntese, de encontro feliz de dois Mignone que se completam e se identificam nessa obra”.
Mas talvez o diálogo tenha mais arestas do que Krieger faz crer. Se nas Fantasias Brasileiras houve o encontro de Mignone com o caminho que Chico Bororó já havia trilhado (no dizer de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo), na Burlesca e Tocata há duas partes simétricas, mas divergentes.
Desde o início da peça, a pianística de Mignone se revela plenamente e a orquestra nunca intervém se não houve antes uma provocação do piano. Isso propicia diálogos constantes do solista ora com a orquestra toda, ora com instrumentos individuais ou naipes bem caracterizados, sem grandes solos.
O estilo não lembra nem de longe o Mignone “clássico”, o da sua brasilidade, o que é confirmado em um longo episódio onírico. Burlesca e Tocata poderia terminar aí mesmo, mas de repente se abre o espaço para a dança, para a melodia reminiscente, para as variações temáticas, para o Mignone que se espera. Sim, é verdade que em Burlesca e Tocata há dois Mignone. Qual diverge de qual? Não é mais possível dizer.
Fantasia Brasileira nº 4 e Burlesca e Tocata contribuem para a reflexão sobre a brasilidade de Mignone. Assim, as melodias folclóricas ou parafolclóricas (o recente catálogo de Mignone organizado por Flávio Silva é o único dos catálogos a mencionar que a Fantasia aproveita dois temas populares de A. de Carvalho), o conteúdo harmônico firme na construção e no encadeamento de acordes, a melancolia, a dança, e, no caso específico do piano e orquestra, um pianismo dos mais férteis da música de concerto brasileira — isso é o que compõe a “brasilidade Mignone”.
São também esses os elementos que levaram José Maria Neves a afirmar, num julgamento implacável de 1977, que “as soluções propostas por Mignone para a tensão entre forma e conteúdo não correspondem às preocupações dos dias de hoje e por isto mesmo perdem toda a sua força”. Mas, naquela altura da vida, Mignone já estava acostumado a julgamentos implacáveis, nem cogitando alterar seu pensamento compositivo. Não era mais tempo.
Um último elemento vem se somar à brasilidade de Mignone, este sim bem de seu tempo. É o desejo socializante que Manuel Bandeira resumiu em conferência de 1955: “Mignone quer pois ser claro, tecnicamente requintado, inflexivelmente nacionalista, não só exteriormente mas em profundidade, e determinadamente socializante, isto é, escrevendo música para a comunidade, porque isso concorda com o que ele considera as suas qualidades pessoais: abundância, claridade, visualismo, gosto do brilho e do esplendor”.
De fato, o socializante é, como Mignone diz em “A Parte do Anjo”, “música determinadamente socialística, fazer arte social, arte para a comunidade”, algo que “concorda com os meus instintos”.
No mesmo “A Parte do Anjo”, Mignone desvia seus pensamentos para a ideia do gênio: “Não, não sou um gênio inato. [...] Sou inteligente e me critico demais, e duvido de mim e não tenho confiança em mim. É certo, portanto, que não sou levado pelas forças cegas e transcendentes que fizeram um Beethoven, um Palestrina, um Mussorgsky, esses ignorantes sublimes (disse ‘ignorante’, mas queria dizer ‘burros sublimes’)”.
A homenagem a um desses “ignorantes sublimes” vem em trabalho não datado, mas que se supõe ser do mesmo período da Festa das Igrejas de 1940: a orquestração de Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky.
Para que outra orquestração depois da versão de Ravel? Para demonstrar que a peça pianística original é inesgotável em seus desafios ao bom orquestrador, quer a orquestra confirme os cacoetes da orquestração russa, quer siga caminhos próprios — o que Ravel fez, e também Mignone. A orquestra utilizada por Mignone é quase idêntica à de Ravel, com mínimas diferenças. Isto se depreende da dissertação de Sergio di Sabbato, na qual é também proposta a ideia de que a orquestração seja semelhante ao processo de tradução poética.
Na tradução de Mignone, uma característica logo se destaca: o reforço do teor melódico através deste ou daquele recurso instrumental. Ou talvez essa seja apenas uma ilusão auditiva pelo que se espera de Mignone, na comparação com a versão de Ravel, mais fundada na cor harmônica. As interferências no texto de Mussorgsky são mínimas e depois de dois ou três movimentos esquece-se do orquestrador e fica-se com a orquestração — mas nela está Festa das Igrejas, sem tirar nem pôr!
O imenso catálogo da música de Francisco Mignone mostra um compositor de muitas faces. Passado o tempo da discórdia, das críticas boas e más, das pontificações, a música de Mignone se encarregou de mostrar, trabalho após trabalho, que a música é maior do que os embates — que a sua música é maior do que os julgamentos aos quais tantas vezes têm sido submetida. A própria presença de Mignone e sua música na primeira Bienal de Música Brasileira, no Rio de Janeiro, serviu para apaziguar os ânimos.
Esse desejo de concórdia deve servir de exemplo. A música de Mignone, embora um pouco esquecida depois de sua morte, em 1986, merece ser ouvida sempre. Ela sempre revelará mais do que se espera, algo que ainda não se sabia do Brasil. |