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ENSAIOS
Improviso em Homenagem a Stravínski
Autor:Milan Kundera
20/mar/2018

O passado milenar da música que, durante todo o século XIX, saía lentamente das brumas do esquecimento, apareceu de súbito, por volta do meio do século XX (duzentos anos depois da morte de Bach), como uma paisagem inundada de luz, em toda a sua extensão; momento único em que toda a história da música está totalmente presente, totalmente acessível, disponível (graças às pesquisas historiográficas, graças aos meios técnicos, ao rádio, aos discos), totalmente aberta às questões que investigam seu sentido; a meu ver, é na música de Stravínski que esse momento do grande inventário encontra seu monumento. (1)


Se essa tendência a reler e reavaliar toda a história da música é comum a todos os grandes modernistas (se ela é, na minha opinião, o traço que distingue a grande arte modernista do cabotinismo modernista), é todavia Stravínski que a exprime mais claramente que qualquer outro (e, diria, de maneira hiperbólica). É aliás nisso que se concentram os ataques de seus detratores: em seu esforço para enraizar-se em toda a história da música, veem ecletismo; falta de originalidade; perda de inventividade. Sua “inacreditável diversidade de procedimentos estilísticos [...] parece uma ausência de estilo”, diz Ansermet. E Adorno, sarcasticamente: a música de Stravínski não se inspira apenas na música, ela é “a música sobre a música”.


Julgamentos injustos: pois se Stravínski, como nenhum outro compositor, antes e depois dele, inclinou-se sobre toda a extensão da história da música tirando dela a inspiração, isso não diminui em nada a originalidade de sua obra. Não quero apenas dizer que atrás das mudanças de seu estilo perceberemos sempre os mesmos traços pessoais. Quero dizer que é precisamente seu perambular através da história da música, portanto seu “ecletismo” consciente, intencional, gigantesco e sem igual, que é sua total e incomparável originalidade. (2)


A música, antes de Stravínski, nunca soubera dar uma forma aos ritos bárbaros. Não se sabia imaginá-los musicalmente. O que quer dizer: não se sabia imaginar a beleza da barbárie. Sem sua beleza, essa barbárie continuaria incompreensível. (Frisando: para conhecer a fundo esse ou aquele fenômeno, é preciso compreender sua beleza, real ou potencial.) Dizer que um rito sangrento possui uma beleza, eis o escândalo, insuportável, inaceitável. No entanto, sem compreender esse escândalo, sem ir até o fundo desse escândalo, não podemos compreender grande coisa sobre o homem. Stravínski dá ao rito bárbaro uma forma musical forte, convincente, mas que não mente: escutemos a última sequência de A Sagração, a dança do sacrifício: o horror não é escamoteado. Está lá. Que seja apenas mostrado? Que não seja denunciado?


Mas se ele fosse denunciado, isto é, privado de sua beleza, mostrado em sua feiura, seria uma deslealdade, uma simplificação, uma “propaganda”. É porque ele é belo que o assassinato da moça é tão horrível.


Assim como ele fez um retrato da missa, um retrato de uma festa campestre (Petrouchka), Stravínski fez aqui o retrato do êxtase bárbaro. É ainda mais interessante que ele tenha se declarado sempre e explicitamente partidário do princípio apolíneo, contrário ao princípio dionisíaco: A Sagração da Primavera (notadamente suas danças rituais) é o retrato apolíneo do êxtase dionisíaco: nesse retrato, os elementos extáticos (a batida agressiva do ritmo, alguns motivos melódicos extremamente curtos, muitas vezes repetidos, nunca desenvolvidos e parecendo gritos) são transformados em grande arte requintada (por exemplo, o ritmo, apesar de sua agressividade, torna-se tão complexo na alternância rápida de compassos diferentes que cria um tempo artificial, irreal, inteiramente estilizado); no entanto, a beleza apolínea desse retrato da barbárie não esconde o horror; ela nos mostra que no fundo do êxtase não se encontra senão a dureza do ritmo, as batidas severas da percussão, a insensibilidade extrema, a morte. (3)


A vida de Stravínski está dividida em três partes de tamanhos mais ou menos iguais: Rússia: 27 anos; França e Suíça francófona: 22 anos; América: 32 anos.


O adeus à Rússia passou por várias fases: Stravínski fica primeiro na França (a partir de 1910) como numa longa viagem de estudos.

 


Esses anos são, aliás, os mais russos de sua criação: Petrushka, Zvezdoliki (baseado na poesia de um poeta russo, Balmont), A Sagração da Primavera, Pribaoutki, o começo de As bodas. Depois vem a guerra, os contatos com a Rússia tornam-se difíceis; no entanto, ele continua sempre compositor russo com Renard e A história do soldado, inspirados pela poesia popular de sua pátria; só depois da revolução compreende que seu país natal estava perdido para ele, provavelmente para sempre: começa a verdadeira emigração.


Emigração: uma estadia forçada no estrangeiro para aquele que considera seu país natal sua única pátria. Mas a emigração prolonga-se e uma nova fidelidade começa a nascer, aquela do país adotado; vem então o momento da ruptura. Pouco a pouco, Stravínski abandona a temática russa. Escreve ainda, em 1922, Mavra (ópera-bufa baseada em Púchkin), depois, em 1928, O beijo da fada, essa lembrança de Tchaikóvski; depois, a não ser por algumas exceções marginais, não volta a ela. Quando morre, em 1971, sua mulher Vera, obedecendo à sua vontade, recusa a proposta do governo soviético de enterrá-lo na Rússia e faz com que seja transferido para o cemitério de Veneza.


Sem dúvida, Stravínski trazia em si a ferida de sua emigração, como todos os outros. Sem dúvida, sua evolução artística teria tomado um caminho diferente se tivesse podido ficar onde tinha nascido. Realmente, o começo de sua viagem através da história da música coincide mais ou menos com o momento em que seu país natal não mais existe para ele; tendo compreendido que nenhum outro país poderia substituí-lo, ele encontra sua única pátria na música; isso não é, de minha parte, uma bela versão lírica, penso assim de modo inteiramente concreto: sua única pátria, sua única casa, era a música, toda a música de todos os músicos, a história da música; foi ali que ele decidiu se instalar, se enraizar, morar; foi ali que ele acabou encontrando seus únicos compatriotas, seus únicos parentes, seus únicos vizinhos, de Pérotin a Webern; foi com eles que começou uma longa conversa que só parou com a morte.


Ele fez tudo para sentir-se em casa: parou em todas as peças dessa casa, tocou todos os cantos, acariciou todos os móveis; passou da música do antigo folclore para Pergolesi, que lhe deu Pulcinella (1919), para os outros mestres do barroco, sem os quais seu Apollon Musagète (1928) seria impensável, para Tchaikóvski, de quem transcreveu as melodias em O beijo da fada (1928), para Bach, que é o padrinho de seu Concerto para piano e instrumentos de sopro (1924), seu Concerto para violino (1931) e de quem reescreveu as Variações canônicas Vom Himmel hoch (1956) para o jazz, que celebra em Ragtime para onze instrumentos (1918), em Piano-rag-music (1919), em Prelúdio para jazz band (1937) e em Ebony Concerto (1945), para Pérotin e outros velhos polifonistas, que inspiram a Sinfonia dos salmos (1930) e sobretudo sua admirável Missa (1948), para Monteverdi, que estuda em 1957, para Gesualdo, de quem transcreveu os madrigais em 1959, para Hugo Wolf, de quem faz o arranjo de duas canções (1968) e para a dodecafonia, à qual a princípio fizera restrições, mas que, finalmente, depois da morte de Schönberg (1951), reconheceu também como uma das peças de sua casa.


Seus detratores, defensores da música concebida como expressão dos sentimentos, que se indignavam com a insuportável discrição de sua “atividade afetiva” e o acusavam de “pobreza de coração”, não tinham eles próprios coração bastante para compreender qual ferida sentimental se encontrava por detrás desse seu perambular através da história da música. (4)


1. Milan Kundera. “Improviso em homenagem a Stravínski”. In: Os testamentos traídos. Trad.: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luíza Newlands. São Paulo: Campanhia das Letras, 2017, pp. 69-70.
2. Idem, pp. 82-83.


3. Ibidem, pp. 98-99.
4. Ibidem, pp. 102-104.


 

N.E.: Neste artigo, grafa-se “Stravínski” em respeito à edição utilizada.

 


Trechos extraídos
 do ensaio “Improviso
 em Homenagem a Stravínski”, publicado no livro Os Testamentos Traídos (São Paulo: Companhia das Letras, 2017). Trad.: Teresa Bulhões Carvalho
 da Fonseca e Maria Luíza Newlands.