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ENSAIOS
Signor Tambourossini
Autor:Larry Wolff
19/mar/2018

Dois dias após o ataque terrorista a Barcelona, em 17 de agosto de 2017, um coro de guerreiros gregos cantou em um palco na pequena cidade de Pesaro, na costa adriática da Itália: “Empunhemos nossas espadas; os muçulmanos escalam nossas muralhas”. Um coro de soldados turcos encontrava-se com eles na abertura da próxima cena, celebrando a conquista: “A chama veloz e a espada assassina espalharam horror por todos os cantos”. A ópera era Le Siège de Corinthe (O Cerco de Corinto), obra-prima de Gioachino Rossini, escrita em 1826, sobre a resistência de uma comunidade cristã a um ataque muçulmano — dramatização operística do que Samuel Huntington já chamou de “choque de civilizações” entre cristãos e muçulmanos.


O Cerco de Corinto raramente é apresentado. No verão europeu de 2017, a ópera foi realizada no Rossini Opera Festival, na cidade em que o compositor nasceu, em 1792. A produção foi montada pela companhia La Fura dels Baus, de Barcelona, e a performance começou com uma declaração de solidariedade à tragédia que atingiu a cidade de Barcelona “e todo o mundo civilizado”. A ópera talvez seja a realização mais audaciosa de Rossini — o compositor pretendia mobilizar nossas paixões mais profundas e nossas angústias mais desconfortáveis através da obra.


Enquanto habitualmente associamos Rossini ao entretenimento cômico de sua obra mais popular, Il Barbieri di Siviglia, Le Siège de Corinthe apresenta uma narrativa muito diferente e bem mais sombria.


A ópera é dominada por Mehmed II, o sultão otomano conhecido historicamente como Mehmed Fatih, o Conquistador, em virtude do cerco e conquista que realizou à capital bizantina de Constantinopla, em 1453. Mehmed partiu para a conquista da Grécia, e sua vitória foi dramatizada por Rossini. Apesar da produção apresentada em Pesaro transcorrer num futuro pós-apocalíptico, com gregos e turcos competindo por água potável, o figurino steampunk do sultão, é o aspecto mais espetacularmente “turco” da produção.


O figurino de 1826, da produção original parisiense, desenhado pelo artista francês Hippolyte Lecomte, recriava de maneira extravagante os detalhes da aparência de Mahomet com as joias de seu grande turbante branco, a longa túnica azul de mangas douradas, a calça pantalona vermelha e sandálias turcas. A maravilhosa música de Rossini transforma Mahomet numa estrela carismática. “Eu farei o Universo se submeter ao meu poder”, canta, como conquistador que aspira dominar o mundo, o guerreiro muçulmano, com linhas vocais lindamente ornamentadas.


Para a geração de Rossini, um conquistador assim era instantaneamente reconhecido. O sultão otomano dos palcos parisienses de 1826 permitia ao público francês recordar a figura política dominante daqueles tempos: Napoleão Bonaparte, derrotado em Waterloo em 1815 e falecido na ilha de Santa Helena em 1821. A fantasia da conquista do Universo, apesar da vestimenta otomana, pertencia à história recente da Europa.


O próprio Rossini foi celebrado como conquistador napoleônico por Stendhal, o qual escreve [em sua Vida de Rossini]: “Napoleão está morto; mas um novo conquistador se apresenta ao mundo; de Moscou a Nápoles, de Londres a Viena, de Paris a Calcutá, seu nome é dito em todas as línguas”.


Rossini era mais querido e aclamado que Beethoven na década de 1820, época na qual ele se dedica à obra O Cerco de Corinto, como se fosse um intruso italiano decidido a transformar completamente a ópera francesa — o que ele faria novamente com Guillaume Tell, em 1829, a última dentre suas cerca de 40 óperas. Depois, misteriosamente, Rossini desistiu da composição operística pelo resto das suas quatro décadas de vida. [...]


Nos anos recentes, a Metropolitan Opera fez suas primeiras produções de Armida, de Rossini, para Renée Fleming; O Conde Ory, para Juan Diego Flórez; e A Dona do Lago, para Flórez e Joyce DiDonato. A última temporada triunfante de Guillaume Tell, com Gerald Finley, foi a primeira em mais de 80 anos. Teremos ainda o revival da produção de 1990 de Semiramide chegando em 2018. Tudo graças, em grande parte, ao trabalho feito pelos musicólogos de Pesaro, nos últimos 38 verões.

 

O mundo da ópera pode agora conhecer Rossini e apreciar seu gênio melhor do que em qualquer outro período desde o auge do seu sucesso nos anos 1820. [...]


As óperas que tematizavam os turcos nos palcos europeus pertencem a uma tradição muito esquecida, porém de suma importância: ela refletia tanto as complicadas relações entre europeus e otomanos quanto o envolvimento entre cristãos e muçulmanos durante o Iluminismo. Essas óperas eram constantemente escritas e apresentadas no século XVIII — a mais famosa de todas é de Mozart, Die Entführung aus dem Serail (O Rapto do Serralho) — , mas o Mahomet de Rossini em 1826 seria o último protagonista turco a tomar o palco.


Óperas do século XIX apresentavam diversos exotismos — os druidas de Bellini e os egípcios antigos de Verdi, a gueixa japonesa e a princesa chinesa de Puccini — mas não há personagens turcos no repertório clássico após Rossini.


Rossini criou uma série de turcos cantantes em L’italiana in Algeri (A Italiana na Algéria), Il turco in Italia (O Turco na Itália) e nas várias versões de Maometto-Mahomet. Um colaborador muito próximo do compositor era o espetacular cantor italiano Filippo Galli, que se especializou nos papéis turcos de Rossini, criados para o baixo, registro vocal ultramasculino. A cultura turca também se tornou parte da identidade de Rossini, no aspecto público e privado. Como compositor, ele adorava a percussão janízara turca de tambores, sinos e pratos, anteriormente utilizada por Gluck, Haydn e Mozart. Essa característica se tornou tão associada a Rossini que sua caricatura em Paris era a de um homem usando turbante e batendo um grande tambor — o Signor Tambourossini, retratado como turco em função de sua música ser tão clamorosamente violenta para o delicado ouvido francês.


O musicólogo suíço Reto Müller, ao trabalhar na publicação das correspondências do compositor, descobriu nas cartas familiares de Rossini que ele transformou o próprio pai num turco de apelido “Mustafá” — o mesmo nome do cômico tirano turco de L’italiana in Algeri.


O Mehmed histórico, que conquistou a Grécia e chegou a enviar um exército para a Itália (o desembarque ocorreu em Otranto em 1480), via a si próprio como herdeiro da Grécia e da Roma antigas. O sultão era fascinado pelo Renascimento Italiano e trouxe o pintor veneziano Gentile Bellini (irmão do célebre Giovanni Bellini) a Constantinopla.


Em O Cerco de Corinto, Mahomet inicialmente surge como o mais civilizado dos conquistadores, impedindo seus soldados de destruírem Corinto e recomendando a eles respeito aos monumentos gregos. Ele canta sua ambição de alcançar a glória e a imortalidade através das artes e das armas — e Rossini deu a esse sentimento um acompanhamento orquestral de sonoridade lindíssima.


Mahomet aparece na ópera como um figura culta e refinada. O Mehmed histórico, afinal, foi o sultão que não apenas transformou a igreja bizantina de Hagia Sofia [Istambul] em uma mesquita, como fez da arquitetura bizantina o modelo para futuros templos otomanos. [...]


O Cerco de Corinto, apesar de teoricamente se passar no século XV, tomou como tema a Guerra de Independência Grega de então. Um dos críticos se queixou do tom jornalístico da ópera: “Se a obra é um boletim sobre a Grécia, que seja impresso no Moniteur [jornal francês fundado em 1789]. Se é uma ópera, que seja assim executada”. Nunca houvera até então uma ópera que tratasse tão diretamente das manchetes de jornais. O Cerco de Corinto, de 1826, pode ser visto como tão perturbador quanto Death of Klinghoffer (A Morte de Klinghoffer), composição de 1991 do americano John Adams. Esta é uma ópera baseada no caso do sequestro do cruzeiro Achille Lauro pela Frente pela Libertação da Palestina em 1985 e chocou o público ao criar beleza musical sobre a violência terrorista. Quando Rossini transformou Maometto Secondo em Le Siège de Corinthe, um outro baixo foi adicionado, o ancião grego que mobilizava seu povo contra Mahomet, recordando que seus ancestrais lutaram nas Termópilas e em Maratona. Rossini compôs um hino de independência da Grécia à maneira da Marselhesa e o público parisiense de 1826 se colocou a seus pés ao aderir ao entusiasmo patriótico grego. [...]


As óperas de Rossini sugerem que ele próprio quis levar ao palco uma possibilidade de integração de alturas. A obra é ambígua, no entanto, no que se refere a até onde essa possibilidade pode levar. Criar harmonia é prerrogativa do compositor, e alguns de seus personagens turcos permitiam que ele imaginasse uma espécie de integração cultural em suas composições operísticas. Na ópera Il turco in Italia, de 1814, a italiana Fiorilla e o viajante turco Selim são irresistivelmente atraídos um pelo outro. Ela canta, flertando: “In Italia certamente non si fa l’amor cosi” (“Na Itália certamente não se faz amor assim”), ao que ele responde: “In Turchia sicuramente non si fa l’amor così” (“Na Turquia seguramente não se faz amor assim”). A música de Rossini, no entanto, revela tamanha compatibilidade nas linhas e ornamentações dos amantes que se torna perfeitamente claro que eles fazem amor exatamente da mesma maneira. Na tragédia de O Cerco de Corinto, no entanto, quando o sultão turco e a mulher grega se apaixonam, não há lugar em seu universo geopolítico que permita a realização do romance. Parte da emoção da ópera é a incapacidade de o amor atravessar o abismo cultural criado pela história europeia. Mahomet quer preservar os monumentos gregos de Corinto,mas acaba destruindo a cidade. Ele se torna o turco que todos temiam desde o início. [...]


Mahomet, o último turco a dominar os palcos operísticos da Europa, tem a simpatia musical de Rossini, enquanto permanece rodeado pela violência e pela destruição que ele próprio suscitou. Conquistou Corinto, mas o tenor Luca Pisaroni (que fez o papel em Pesaro) o vê como “um homem destruído que perdeu tudo que tinha”. E, ao hesitarmos sobre estender nossa solidariedade a Mahomet, reconhecermos o gênio de Rossini e o poder da ópera em iluminar conflitos culturais traumáticos, que ainda nos cercam no século XXI.

 

Trechos extraídos
 do artigo Signor Tambourossini

(The New York Review of Books, 12 Out. 2017; p. 17-18). Trad.: André Cristi.