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ENSAIOS
Um Clássico Popular
Autor:Diego Fischerman
24/mai/2021

 

Astor Piazzolla em um de seus últimos
concertos, em Buenos Aires

Em 1846, o fotógrafo e antiquário britânico William John Thomas inventou uma palavra: folklore. O que ela designava, o povo (folk) e seu saber (lore), não era novo. Novas, no entanto, eram a necessidade de nomear esse conceito e o entendimento de que os costumes dos povos, suas narrativas, suas formas de dançar ou cantar, suas músicas, não eram simplesmente versões imperfeitas ou malsucedidas da arte das metrópoles e que tinham suas próprias regras.

 

O interesse por esses sons, da parte dos músicos de formação acadêmica, foi crescendo e desse processo participaram os diversos nacionalismos da segunda metade do século XIX no quadro da criação dos grandes Estados-nações. E, já no século XX, com o surgimento do registro fonográfico e da indústria do disco, começou a se verificar o movimento inverso: músicos provenientes de tradições populares que incorporavam técnicas, procedimentos, formas ou instrumentações do mundo chamado “clássico”. No primeiro grupo poderíamos incluir facilmente Maurice Ravel, Darius Milhaud, George Gershwin (em suas obras “clássicas”) ou Igor Stravinsky e os nacionalistas americanos, de Aaron Copland a Heitor Villa-Lobos, Amadeo Roldán ou Alberto Ginastera. No segundo estariam músicos como John Lewis, Miles Davis, Tom Jobim ou os Beatles.

 

Mas existe um caso único: o de Astor Piazzolla, que não se encaixa exatamente em nenhuma dessas classificações. E, sobretudo, é alguém que o mercado, por ação ou omissão, se negou a classificar. Grande parte do universo do tango se dedicou a dizer que ele não fazia tango. O mundo das vanguardas históricas e da composição contemporânea no campo da música clássica o considerava um estrangeiro (logo ele, que tanto tinha usado as palavras “vanguarda” e “contemporâneo” em títulos de obras e de discos). E mesmo quando os intérpretes “clássicos” mais destacados interpretaram suas obras, aquele universo fechado terminava traduzindo, a seu modo, o velho conselho de Nadia Boulanger: faça tango, não tente invadir nosso terreno.

 

Pierre Verger

Corrientes e Diagonal Norte, Buenos Aires, 1941-42

 

No entanto, as coisas não aconteceram dessa maneira. Piazzolla não só acabou sendo aceito por todos aqueles círculos culturais que o tinham repelido como também foi aceito de um modo totalmente inédito. Se com Gershwin estava claro quando se tratava de obras “clássicas” e quando não (pouco importando o quanto havia destas naquelas), com Piazzolla, o grande anulador de fronteiras, tudo se misturou. E nos programas de concerto e nos discos se reuniram, lado a lado, aquelas composições das quais ele mesmo tinha sido intérprete junto com seus grupos pequenos, “populares”, e as composições como Le Grand Tango para violoncelo e piano — transcrita para grande quantidade de configurações instrumentais — ou La Historia del Tango, originalmente para flauta e violão e tocada atualmente tanto por grupos de tango quanto por intérpretes clássicos. E, no meio desse panorama, suas Cuatro Estaciones Porteñas, uma suíte de obras que o bandoneonista foi construindo pouco a pouco a partir da primeira, Verano Porteño, que tinha sido, em meados dos anos 1960, a música de uma obra teatral. O certo é que o próprio Piazzolla gravou as quatro peças juntas uma única vez, em seu registro ao vivo de um concerto do Quinteto no Teatro Regina de Buenos Aires em 1970. E foi a música clássica que acabou defInindo o destino dessas quatro composições populares, escritas para um quinteto que somava a guitarra elétrica aos instrumentos do tango, e que veio a se tornar, também, um clássico da música popular.

 

Programa do concerto de Piazzolla com a Osesp, no 

Teatro Cultura Artística,  em 1982

No outro extremo dessas quatro estações que respiram o ar de uma cidade contemporânea (e algo vanguardista ou, pelo menos, modernista) e um gesto que remete de modo inegável aos grupos de cool jazz dos anos 1950 e 60 — embora não haja improvisação ali, a música está estruturada em solos muito complexos —, encontra-se uma de suas composições sinfônicas mais características, os Tres Movimientos Tanguísticos Porteños. Criada em 1961, essa obra traz para o tango o modelo que Gershwin tinha patenteado — materiais populares desenvolvidos com procedimentos clássicos. Mas faz isso com uma linguagem mais próxima de Stravinsky do que de Rachmaninov, que era a fonte clássica em que bebia o estadunidense. E ali nasce um dos mal-entendidos que assolaram o bandeonista em vida: a ideia de que suas referências no campo da tradição acadêmica eram antiquadas, inclusive Stravinsky, que, nos anos 1960, já tinha abdicado fazia tempo das sagrações primaveris.

 

É que, em certa medida, a estética de Piazzolla bem pode ser assimilada à do escritor Jorge Luis Borges [1899-1986]. Sua enciclopédia pode ser antiquada e, decerto, arbitrária, mas sua utilização é absolutamente original. As sequências harmônicas e os trinados com resolução podem remeter ao Barroco; as escalas octatônicas fazem pensar em Stravinsky, da mesma maneira como certos padrões rítmicos assimétricos põem em cena a influência de Béla Bartók. Mas essa mescla particular era tão absoluta e exclusivamente piazzolliana que ninguém poderia confundi-la com nenhum dos modelos aos quais se refere. 

              

Mais uma coisa, quem sabe a mais importante. Talvez por seu infalível ouvido “popular”, por imaginar-se a si mesmo como intérprete — inclusive nas obras que não o tinham como protagonista — e diferentemente de muitos dos experimentos realizados durante a segunda metade do século XX para estilizar músicas de tradição popular e colocá-las na órbita do concerto clássico, a música de Piazzolla, mesmo a mais intrincada, sempre soa natural. Sempre tem a fluidez da improvisação, do assobio das ruas, do músico popular, do saber do povo.

 

                 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Matéria no Jornal da Tarde, em 21 de outubro de 1982                             

DIEGO FISCHERMAN (Buenos Aires, 1955) é escritor, professor e jornalista. É autor de Después de la Música: el Siglo xx y más Allá (Eterna Cadencia, 2013), El Sonido de los Sueños y Otros Ensaios sobre Música (Debate, 2017), Efecto Beethoven: Complejidad y Valor en la Música de Tradición Popular (Paidos Iberica, 2004) e, em colaboração com Abel Gilbert, Piazzolla, el Mal Entendido: un Estudio Cultural (Edhasa, 2009).

 

Tradução de Marcos Bagno

 

GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

 

Piazzolla Interpreta Piazzolla:

Astor Piazzolla y su Quiteto

Edição Crítica
Sony, 2005 [1961]

 

Astor Piazzolla y su Quiteto:

Adiós Nonino
Trova, 1989 [1969]

 

Piazzolla: Teatro Regina

Edição Crítica

Sony, 2007 [1970]

 

Astor Piazzolla: Libertango
Trova, 2006 [1974]

 

Astor Piazzolla / Gerry Mulligan:
Summit – Reunión Cumbre

ANS, 1990 [Trova, 1974]

 

Astor Piazzolla: Suite Troileana
Trova, 2014 [1975]

 

Tango Zero Hour
Warner, 2005 [Nonesuch, 1986]

 

Astor Piazzolla: The Lausanne Concert
Warner, 2006 [Milan Records, 1989]

 

Kronos Quartet / Astor Piazzolla:
Five Tango Sensations
Elektra, 1991

 

Rostropovich: The Russian Years
(Piazzolla: Ustvolskaya; Schnittke)

Warner, 2017 [1996]