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ENSAIOS
Beethoven e a qualidade da coragem
Autor:Daniel Barenboim
04/mar/2020

 

 

Lorenz Siegel

Beethoven, 1887

É sempre interessante — e às vezes até importante — ter conhecimento íntimo da vida de um compositor, mas não é essencial para entender suas obras. No caso de Beethoven, não devemos esquecer que em 1802, o ano em que contemplou a possibilidade do suicídio — como escreveu numa carta aos irmãos que acabou não enviando, e que veio a ser conhecida como o “Testamento de Heiligenstadt” [ver p. 16] —, ele também compôs a Segunda Sinfonia, uma de suas obras de espírito mais positivo, deixando então claro que é de vital importância separar sua música da biografia pessoal, não confundindo as duas coisas.

 

Assim, não vou propor aqui um estudo psicológico elaborado do homem Beethoven por meio da análise de suas obras, ou vice-versa. Na verdade, embora o foco deste ensaio de fato seja a música de Beethoven, devemos ter em mente que não é possível explicar por palavras a natureza da mensagem musical. A música significa coisas diferentes para pessoas diferentes e, às vezes, até coisas diferentes para a mesma pessoa em diferentes momentos da vida. Ela pode ser poética, filosófica, sensual ou matemática, mas em qualquer dos casos deve, do meu ponto de vista, ter algo a ver com a alma do ser humano. Ela é, portanto, metafísica; mas o meio de expressão é pura e exclusivamente físico: o som. Acredito que a força da música está precisamente nessa permanente coexistência da mensagem metafísica nos meios físicos. E é também o motivo pelo qual, quando tentamos descrever a música com palavras, conseguimos apenas articular nossas reações a ela, e não apreender a música propriamente.

 

A importância de Beethoven na música tem sido definida basicamente pela natureza revolucionária das suas composições. Ele libertou a música das convenções de harmonia e estrutura que prevaleciam então. Às vezes sinto em suas obras tardias uma vontade de romper com quaisquer indícios de continuidade. A música é imprevisível e aparentemente desconexa, como na última sonata para piano (Op. 111). Na expressão musical, ele não se sentia tolhido pelo peso das convenções. Segundo consta, era alguém de ideias livres e de coragem, e eu considero a coragem uma qualidade essencial para a compreensão — quanto mais para a interpretação — de suas obras.

 

Essa atitude de coragem se torna na verdade um requisito para os intérpretes da música de Beethoven. Suas composições exigem que o músico evidencie coragem, por exemplo, no emprego das dinâmicas. Beethoven tinha o hábito de elevar o volume com um crescendo intenso e bruscamente segui-lo de uma súbita passagem suave (um subito piano), o que raramente era feito pelos compositores antes dele. Em outras palavras, Beethoven pede que o intérprete demonstre coragem, sem medo de chegar à beira do precipício, e assim o obriga a encontrar a “linha de maior resistência”, expressão cunhada pelo grande pianista Artur Schnabel.

 

***

 

Beethoven era um homem profundamente político, no sentido mais amplo da expressão. Não se interessava pelo dia a dia da política, mas se preocupava com questões de comportamento moral e sobre o certo e o errado no que tange a sociedade. Especialmente significativa era sua concepção de liberdade, que para ele estava ligada aos direitos e responsabilidades do indivíduo: ele era um defensor da liberdade de pensamento e de expressão.

 

...levar os benefícios da liberdade a todo o planeta. [...] Se eu sou capaz de produzir algo de valor para os outros, devo ter a possibilidade de vendê-lo. Se os outros produzem algo de valor para mim, devo ter a possibilidade de comprá-lo. Esta é a verdadeira liberdade, a liberdade de qualquer pessoa – ou nação – de ganhar a vida.

 

De uma maneira equivocada, a música de Beethoven muitas vezes é considerada exclusivamente dramática, expressando uma luta titânica. Neste sentido, a Eroica e a Quinta Sinfonia representam apenas um lado da sua obra; também devemos apreciar, por exemplo, a Sinfonia Pastoral. Sua música é ao mesmo tempo introvertida e extrovertida, a todo momento justapondo essas qualidades. A única característica humana que não está presente em sua música é a superficialidade. E ela tampouco pode ser caracterizada como tímida ou graciosa. Pelo contrário, mesmo quando assume um caráter íntimo, como no Concerto para Piano nº 4 e na Sinfonia Pastoral, ela tem um elemento de grandeza. E quando é monumental, ainda se mantém intensamente pessoal, sendo o exemplo mais óbvio a Nona Sinfonia.

 

A meu ver, Beethoven alcançou em sua música um perfeito equilíbrio entre a pressão vertical — pressão do domínio da forma musical por parte do compositor — e a fluência horizontal: ele sempre associa fatores verticais como harmonia, altura, acentuação ou andamento, todos relacionados a um senso de rigor, com um grande senso de liberdade e fluidez. Acredito que essa questão dos extremos e do equilíbrio deva ter sido uma preocupação consciente para ele. Encontramos uma expressão disso em Fidelio, por exemplo: a composição evidencia um constante movimento entre opostos polares — da luz à escuridão, do negativo ao positivo, entre acontecimentos ocorridos acima, na superfície, e os subterrâneos. Assim como não seria capaz de compor algo superficial, ou simplesmente bonito, ele também não era capaz ou não queria compor alguma coisa que retratasse algo fundamental e exclusivamente da esfera do mal. Mesmo um personagem como Pizarro, o diretor da prisão em Fidelio, pode ser visto como uma personificação da corrupção e da opressão, mas não do mal.

 

A música de Beethoven tende a evoluir do caos para a ordem (como na introdução da Quarta Sinfonia), como se a ordem fosse um imperativo da existência humana. Para ele, ordem não significa esquecer ou ignorar as desordens que afligem nossa vida; a ordem é um desdobramento necessário, um aprimoramento capaz de levar ao ideal grego da catarse. Não é por acaso que a “Marcha Fúnebre” não é o último movimento da Sinfonia Eroica, mas o segundo, pois assim o sofrimento não tem a última palavra. Poderíamos parafrasear boa parte da obra de Beethoven dizendo que o sofrimento é inevitável, mas a coragem de enfrentá-lo faz a vida valer a pena.
 

DANIEL BARENBOIM

Um dos mais eminentes maestros da atualidade. Como pianista, destacou-se por suas interpretações de Mozart e Beethoven. Nascido na Argentina, é cofundador da West-Eastern Divan Orchestra, que reúne jovens músicos árabes e judeus. Diretor Musical da Ópera de Berlim, em 2019 foi nomeado Regente Honorário da Filarmônica de Berlim.

Texto publicado originalmente no The New York Review of Books, Nova York, p. 30, 4 abr. 2013. Copyright © 2013 by Daniel Barenboim. A Revista Osesp agradece à revista e ao autor pela generosa permissão para reproduzir este ensaio.

 

Texto publicado originalmente no The New York Review of Books, Nova York, p. 30, 4 abr. 2013. Copyright © 2013 by Daniel Barenboim. A Revista Osesp agradece à revista e ao autor pela generosa permissão para reproduzir este ensaio.

Tradução de Clóvis Marques