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ENSAIOS
Concertos de Beethoven
Autor:Lorenzo Mammì
04/mar/2020

 

 
  Josef Danhauser
Franz Liszt Fantasiando ao Piano, 1840

Beethoven se mudou de Bonn para Viena em 1792. Mozart morrera há um ano, Haydn acabara de voltar de sua triunfal tournée londrina. Com ele, o jovem pianista teve algumas aulas — não muito satisfatórias, em sua opinião. No mais, no gênero concerto, e principalmente concerto para piano, não havia muito o que apreender com Haydn, que pouco o praticou. Mas os 27 concertos de Mozart eram uma herança incontornável.

 

Na época, o concerto para solista e orquestra era de longe a forma mais importante da música instrumental, muito mais que a sinfonia. Com Mozart, parecia ter alcançado uma plenitude dificilmente superável. Formalmente, baseava-se no contraste entre as tonalidades de tônica e de dominante: no primeiro movimento, a orquestra apresentava os temas na tonalidade principal, em seguida o solista os reelaborava distribuindo-os entre as duas tonalidades, a orquestra ia modulando junto com ele, em respostas mais ou menos breves. Finalmente, solista e orquestra convergiam na volta à tonalidade fundamental. O segundo movimento era de expansão lírica e estrutura mais simples. Amiúde, era o solista que apresentava os temas no início da seção, enquanto a orquestra se limitava a um papel de acompanhamento ou de repetição. Esse movimento costumava ser numa tonalidade ligeiramente afastada (de regra, a relativa menor ou a subdominante), indicando assim um momento de introversão intimista. Finalmente, no terceiro movimento, de ritmo mais dançante (geralmente um rondó), solista e orquestra reafirmavam a tonalidade principal da obra, alternando entre si frases regulares e estróficas.

 

Era um esquema simples, mas muito flexível e extremamente sólido. Beethoven nunca o contradisse em suas linhas gerais, mas o dobrou a projetos mais ambiciosos. Talvez tenha sido ele o primeiro compositor a conceber sua arte como uma experiência existencial, e não como atividade profissional. No entanto, sempre acreditou, mesmo em suas últimas experimentalíssimas composições, que as formas herdadas tivessem a capacidade de explicitar essa experiência. O aumento da complexidade nos detalhes nunca leva, em Beethoven, a um enfraquecimento da arquitetura do conjunto, como acontece nos românticos. Ao contrário, o controle da estrutura e do equilíbrio gerais se torna ainda mais obsessivo.

 

Donald Tovey observou certa vez que Beethoven teria deslocado as formas instrumentais clássicas da comédia de costumes (high comedy) para a tragédia. É verdade que a comédia de costumes já tinha se tornado algo muito sério em As Bodas de Fígaro e trágico no Don Giovanni. Afinal, era o mesmo indivíduo burguês, antigo protagonista das comédias, que agora enfrentava revoluções e guerras napoleônicas. Mas a observação de Tovey vale especialmente para a forma concerto, em que a oposição entre indivíduo e mundo é explícita; e não resta dúvida que Beethoven a tenha explorado num sentido trágico, especialmente nos últimos concertos.

 

Um dos obstáculos à ampliação da forma, especialmente no primeiro movimento, era que a apresentação inicial dos temas principais na tonalidade fundamental podia se tornar muito estática, se prolongada além de certo limite. Por outro lado, modular para a dominante já na introdução tiraria sentido à entrada do solista. Beethoven resolve o problema fazendo a orquestra modular já na introdução para uma espécie de dominante substituta, mais frouxa e indeterminada, geralmente uma terça abaixo ou acima da tônica, enquanto a transição para a verdadeira dominante é deixada para o solista. Para tanto, deve excogitar novas maneiras, sempre muito inventivas, para transitar rapidamente entre tonalidades distantes. Além disso, o aumento da complexidade harmônica tem consequências para o esquema geral: não é raro, nos concertos de Beethoven, que o movimento lento seja numa tonalidade relacionada à tonalidade secundária da introdução, e não ao tom principal da obra. As remissões entre movimentos indicam que Beethoven já pensava o conjunto como organismo unitário, e não como contraposição de seções estanques.

 

A harmonia mais complexa demandava figuras melódicas enxutas, que a tornassem facilmente reconhecível. Daí o caráter assertivo dos motivos “heroicos” beethovenianos. Por outro lado, motivos tão curtos exigiam uma elaboração diferente: fonte para variações infindáveis, abriam caminho para a assim chamada “saturação motívica” do estilo maduro de Beethoven, pela qual todo o material melódico da obra é extraído de uma sequência de poucas notas — como na Quinta Sinfonia.

 

Franz Hanfstaengl e Albert Gräfle
Os Amigos Íntimos de Beethoven

 

A primeira vez que Beethoven executou um concerto de sua autoria para o público de Viena foi em 1795. Tratou-se provavelmente do Concerto nº 2 em Si Bemol Maior, que foi composto antes, mas publicado depois do Concerto nº 1. É ainda obra de um bom discípulo de Mozart. O nº 1 em Dó Maior, escrito logo em seguida, também fundamentalmente mozartiano, já apresenta sinais de um estilo original no caráter do primeiro tema, centrado sem rodeios no acorde de tônica; na modulação imprevista para Mi Bemol do segundo tema, ainda na exposição orquestral; no movimento lento em Lá Bemol, distante da tonalidade principal, mas relacionado com o Mi Bemol da introdução.

 

Sem dúvida, porém, o concerto que inaugura um novo estilo é o terceiro, contemporâneo da Sinfonia Eroica (1803). É em Dó Menor, tonalidade geralmente associada a obras intensamente expressivas do compositor (Sonata Patética, Quinta Sinfonia). A orquestração é ampliada, com flautas dobradas, trompetes e tímpanos. O primeiro tema, construído sobre as notas do acorde principal, passa já na introdução por uma série incomum de modulações. Para contrabalançar a orquestra ampliada, a escrita do piano é mais virtuosística. A tonalidade do movimento lento, Mi Maior, muito distante da tonalidade principal, é instigante: desta vez, não há nada no primeiro ou no terceiro movimento que se relacione com ela. Uma estranheza tão radical tem o efeito de religar o terceiro movimento, de novo em Dó Menor, com o primeiro, passando por cima de uma espécie de zona de sombra, em vez de associar o terceiro movimento com o segundo, como é mais comum. Uma solução ousada que o compositor retomará, modificada, no Concerto nº 5. Que os movimentos extremos, assertivos, sejam em tonalidade menor, e o movimento lento, melancólico, em maior, é mais uma confirmação da habilidade de Beethoven em manipular os valores expressivos do sistema tonal.

 

Apesar da importância do Concerto em Dó Menor, são provavelmente o quarto e o quinto, em Sol e em Mi Bemol, as obras-primas de Beethoven no gênero. O nº 4 foi escrito para a gigantesca apresentação de dezembro de 1808, em que o compositor executou também as Sinfonias nº 5 e nº 6, fragmentos da Missa Solemnis, a cena e ária Ah, Perfido! e a Fantasia Coral para piano, coro e orquestra — todas, salvo a ária, em primeira audição —, além de improvisar ao piano. A Sinfonia Pastoral abriu a noite e a Fantasia Coral (um hino ao poder civilizatório da música) a encerrou. Evidentemente, o concerto foi pensado como uma progressão, do estado de natureza ao desabrochar da civilização. O Concerto nº 4 e a Quinta Sinfonia ocuparam o centro, antes e depois do intervalo. Os esboços demonstram que foram pensados juntos: ambos se baseiam em um motivo de quatro notas, o famoso “tema do destino”, que serve de base a grande parte do material melódico. Graças a ele, o Concerto nº 4 se junta à sua gêmea Quinta Sinfonia como o exemplo por excelência da saturação motívica beethoveniana.

 

A novidade mais evidente está logo no início: o piano apresenta o primeiro tema sozinho, ainda que por apenas cinco compassos. A orquestra o retoma imediatamente, mas em outra tonalidade (Si menor) e inicia uma série de modulações especialmente ousadas para o gênero. Que eu saiba, havia apenas um precedente para a entrada tão precoce do solista: o Concerto Jeunehomme (nº 9) de Mozart. Ali, o pianista responde brevemente às primeiras frases da orquestra, como numa saudação polida entre músicos. Aqui é diferente: ao tencionar harmonicamente o tema proposto pelo solista, a orquestra explicita uma inquietude apenas sugerida na primeira enunciação. De interlocutor exterior, a orquestra se torna voz amplificada da consciência.

 

Liszt comparou o segundo movimento, de apenas 72 compassos, a um diálogo entre Orfeu e as Fúrias. Referia-se à cena do Orfeu de Gluck, na qual o protagonista aplaca as Fúrias com seu canto. A analogia é adequada: a orquestra começa fortíssimo, em uníssono. O solista responde com uma breve e simples melodia coral, em pianíssimo. Aos poucos, as frases do piano se tornam mais extensas e as intervenções da orquestra, sempre em uníssono, recuam para o pianíssimo, até que uma cadência introduz sem interrupção um rondó triunfal em ritmo de marcha (2/4), baseado em outra variação rítmica do motivo principal.

 

Quantos, no público dessa famosa noite, terão reparado na semelhança entre o material melódico desse rondó e o do scherzo da Quinta? Poucos, provavelmente, porque a noite foi um redundante fracasso. Menos ainda devem ter lembrado dos cinco golpes enunciados pelos tímpanos e obsessivamente retomados por outros instrumentos da orquestra no primeiro movimento do Concerto para Violino em Ré Maior, estreado em 1806.

 

O Concerto para Violino não teve uma evolução análoga ao para piano. Até Beethoven, permanecera próximo ao estilo galante. Beethoven não tentou transferir para ele o caráter incisivo e a harmonia complexa dos concertos para piano. Ao contrário, baseou todos os movimentos em melodias amplas, cantáveis, sobre uma base harmônica relativamente simples. Apenas no final, após uma cadência aparentemente conclusiva, inseriu uma modulação inesperada, que obriga a uma longa coda para voltar à tônica.

 

Franz Clement, o violinista para qual a peça foi composta, era famoso pela afinação perfeita no registro agudo, que de fato Beethoven utiliza bastante. No mais, tratava-se de um recurso tradicional para diferenciar o solista dos violinos da orquestra, mas aqui ganha novo significado, pela oposição, no primeiro movimento, aos golpes surdos dos tímpanos e ao pizzicato das cordas graves; e, no segundo movimento, pela dilatação inaudita da melodia, até quase se esgarçar numa sonoridade incorpórea.

 

Pouco antes disso, entre 1803 e 1805, Beethoven compusera o Concerto Tríplice. A oposição entre a orquestra e um pequeno conjunto de solistas derivava do concerto grosso barroco, e sobrevivia, especialmente na França, na forma da sinfonia concertante. A formação proposta por Beethoven é bastante inusitada: possivelmente, deve-se a uma encomenda ou homenagem espontânea ao arquiduque Rodolfo, a quem a peça é dedicada e que, pianista amador, teria participado alguma vez de sua execução. As partes dos solistas são bastante desiguais: relativamente simples as do violino e do piano, muito difícil a do violoncelo. A peça utiliza vários recursos que Beethoven estava experimentando na época, como o movimento central numa tonalidade distante e a ligação direta entre movimento lento e rondó, mas é pouco desenvolvida nos movimentos extremos. Vale sobretudo pelo Largo central, de bela expressão elegíaca.

 

Finalmente, o Concerto nº 5 em Mi Bemol, composto em 1809, tem semelhanças marcantes com o nº 4. Aqui também o solista aparece desde o início: a orquestra se limita a poucos acordes, que o solista religa por cadências elaboradas — fórmula utilizada de costume no começo ou no meio de uma seção intermediária (como no Concerto nº 4, no qual inaugura a segunda entrada do solista), mas nunca em abertura da obra. Seu deslocamento é mais uma maneira de Beethoven apresentar de imediato uma situação conflitante. Outra semelhança está no movimento lento, aqui também bastante curto. Sua tonalidade (Si Maior) não tem relação com a principal, como no Concerto nº 3, mas aqui se articula com o rondó final por uma modulação engenhosa em volta de uma nota das trompas. Apesar das analogias, o Concerto nº 5 é muito diferente do anterior em caráter. Tanto aquele era introvertido e atormentado quanto este é luminoso e expansivo. É também o concerto beethoveniano em que o virtuosismo da parte solista é levado mais longe. O apelido de Imperador lhe vem mais desse domínio grandioso dos meios do que de qualquer referência exterior.

 

LORENZO MAMMI

Crítico de música e de arte, curador e professor de Filosofia na USP, onde lecionou História da Música durante mais de dez anos.  Escreveu A Fugitiva: Ensaios sobre Música (2017) e O Que Resta: Arte e Crítica de Arte (2012), ambos publicados pela Companhia das Letras.

 

GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

 

Beethoven: Piano Concertos nºs 1-5; Triple Concerto
Maurizio Pollini, Berliner Philharmoniker
Claudio Abbado, regente

Deutsche Grammophon, 2008

 

Beethoven: The Piano Concertos
Krystian Zimmerman, Wiener Philharmoniker
Leonard Bernstein, regente
Deutsche Grammophon, 1992

 

Beethoven: The Complete Piano Sonatas & Concertos
Claudio Arrau, Concertgebouw
Bernard Haitink, regente

Philips, 1998

 

Berg & Beethoven: Violin Concertos
Isabelle Faust, Orchestra Mozart
Claudio Abbado, regente
Harmonia Mundi, 2012

 

Beethoven: Triple Concerto
Choral FantasIA
Beaux Arts Trio, Leipzig Gewandhaus
Kurt Masur, regente

Decca, 2014

 

Beethoven / Brahms: Violin Concertos
Ginette Neveu
SWR Sinfonie Orchestra Baden-Baden und Freiburg,
Hans Rosbaud, regente
Swr Music, 2016

 

SUGESTÕES DE LEITURA

 

Joseph Kerman e Allan Tyson
Beethoven
L&PM, 1989

 

Barry Cooper (org.)

Beethoven, um Compêndio
Jorge Zahar, 1996

 

Denis Arnold e Nigel Fortune (org.)
The Beethoven Companion
Faber & Faber, 1971