04/mar/2020
|
|
|
Joseph Karl Stieler
Retrato de Ludwig van Beethoven, 1820
|
Ao comemorarmos os 250 anos de seu nascimento, não podemos deixar de refletir sobre o modo como cada geração atribui novos significados ao legado de Ludwig van Beethoven. Louvado como “herói” após sua morte em 1827, ao longo das décadas sua imagem se desdobra em diferentes faces: o homem, o compositor, o revolucionário, o mito. Não conseguimos ouvir Beethoven sem que esses momentos se entrelacem em um contraponto por vezes estranho e dissonante, como frequentemente ocorre em suas obras tardias. Cada uma de suas faces mantém um momento de verdade, e cada geração reconstrói, em busca de harmonia, um novo retrato do compositor.
Sucessivas biografias, muitas delas romanceadas, ressaltaram os aspectos trágicos de sua vida. A criança talentosa oprimida pelo pai violento; o jovem pianista duelando improvisos nos bares de Viena; os amores misteriosos; a relação problemática com o irmão e a luta pelo afeto do sobrinho; o sofrimento das doenças frequentes e da surdez progressiva; o testamento precoce, os problemas financeiros, a morte lenta e dolorosa. Tudo isso vem à mente quando falamos em Beethoven.
A vida é interpretada e o homem se transfigura em revolucionário. Como músico, rejeita ser tratado como mero criado (como ainda foram Haydn e Mozart), exigindo entrar pela porta da frente nas cortes e nos teatros. A busca por autonomia leva aos primeiros concertos públicos, pagos pela classe média burguesa emergente, e também a um difícil relacionamento com os diversos editores de suas obras, vendidas com grande lucro por toda a Europa. O dinheiro que resta, no entanto, é sempre insuficiente, como indicam as inúmeras dedicatórias à aristocracia austríaca. Mesmo assim, o herói não se curva, repreendendo (segundo um relato talvez não muito confiável de Bettina von Arnim) as mesuras exageradas de Goethe a um nobre que os saúda durante um passeio. Entusiasmado com as ideias vindas da França, o Beethoven sem posses se assume como o “proprietário de um cérebro”, compõe obras sutilmente políticas e apoia os radicais do Império Austro-Húngaro. O rasgo na capa do manuscrito da Eroica atesta ao mesmo tempo o apoio aos ideais revolucionários e a decepção com os rumos de Napoleão, que se coroa também imperador. Anos depois, a derrota em Waterloo se transforma em elogio à vitória de Wellington, sem que se cale o lamento sobre a esperança sufocada. No poema de Schiller que encerra sua Nona Sinfonia ecoam ainda as vozes da revolução: um abraço de milhões de irmãos unidos fraternalmente para reunir “o que os costumes rigidamente dividiram”.
Heinrich von Füger
A Criação do Homem por Prometeu, 1790
Após sua morte, o homem e o revolucionário reencarnam no mito. Os românticos idolatram em prosa e verso aquele que soube insuflar “tempestade e ímpeto” [Sturm und Drang] em uma comovente alma amorosa. Os retratos descabelados de Beethoven espalham a imagem do “verdadeiro artista”, que não faz concessões e vive intensamente suas dores e alegrias. A imagem de Prometeu (motivo de algumas de suas obras) se sobrepõe à do compositor, herói orgulhoso que enfrentou seu destino trágico “por amor à humanidade”. Sua inconcebível surdez é entendida como vingança dos deuses e nela ecoa o lema de um de seus quartetos: “Tem de ser assim?”. Celebrado em romances e filmes, o mito assume novas formas e se incorpora à política (o último movimento da Nona é o hino da Comunidade Europeia, enquanto Beethoven é cultuado na China como ideal ético-revolucionário), ao mercado (camisetas de Beethoven vendidas ao lado das de Che Guevara, enquanto Andy Warhol reproduz sua imagem em gravuras coloridas), e à “cultura” (Chuck Berry e os Beatles querem esquecê-lo, enquanto no Google ele se confunde com um cão São Bernardo).
Resta o compositor... O contraditório amálgama que recobre a imagem de Beethoven ao mesmo tempo nos aproxima e nos afasta de suas obras. É nelas, e talvez somente nelas, que encontramos a expressão do homem, do revolucionário, do mito. No entanto, ouvir Beethoven hoje em dia é uma tarefa, como diz Adorno, cada vez mais difícil, senão impossível. Exige uma atenção concentrada, um ouvido capaz de acompanhar os desenvolvimentos orgânicos dos motivos e o arco das tensões dramáticas que articulam o todo. Além disso, cada uma de suas obras desenvolve e dá um novo significado às peças anteriores, dialogando com a história de seu tempo, com a história da música e com seus contemporâneos. Quem ouve o final enigmático da última sonata para piano, Op. 111, talvez já não consiga perceber o escândalo causado pelas novidades das primeiras três sonatas Op. 2. Quem cantarola a melodia do final da Nona talvez se assuste com os contrastes e dissonâncias dos últimos quartetos, compostos logo depois. De toda forma, é em suas obras que o enigma de Beethoven deve ser interpretado, mesmo que não possa ser resolvido.
Se, como vimos, a imagem de Beethoven já é suficientemente complexa e contraditória, o que dizer da participação da religião em sua vida e sua obra? A intenção sacra está presente em apenas três de suas composições: o oratório Cristo no Monte das Oliveiras, Op. 85 (1803); a Missa em Dó, Op. 86 (1807); e a grandiosa Missa Solene em Ré, Op. 123. Sabemos muito sobre a relação de Beethoven com o pensamento iluminista de sua época, mas sua relação com a religião (lembrando que Viena era a capital de um Império Católico) é muito controversa. De qualquer modo, não encontramos em sua obra a religiosidade espontânea que emana das obras de Bach, Haendel ou Haydn. Beethoven é frequentemente visto como um deísta, aquele que acredita racionalmente na existência de um Deus, mas desconfia das tradições religiosas que supostamente o representam. Sabemos que ele frequentava a maçonaria e que expressou, em um de seus cadernos, sua admiração por Sócrates e Jesus como exemplos de coerência moral e de capacidade de suportar o sofrimento com dignidade.
O sofrimento, sem dúvida, faz parte da gênese dessa obra. Em 1818, Beethoven perde definitivamente a audição, que vinha piorando desde a juventude. Nos anos seguintes, quando compõe a Missa, sofre frequentemente de doenças pulmonares e intestinais, e atravessa um período de graves dificuldades financeiras. Nesse contexto, não é de espantar que tenha buscado o auxílio de seu antigo patrono, o arquiduque Rodolfo, irmão mais novo do imperador. Fascinado por música, Rodolfo tinha sido seu aluno de piano e se tornou um dos principais patronos do antigo professor (Beethoven dedicou a ele obras importantes, como o Trio Arquiduque, o Quinto Concerto para Piano e as sonatas Les Adieux e Hammerklavier). O arquiduque tomaria posse como arcebispo de Olmütz em 1820, e Beethoven se ofereceu para compor uma Missa Solene para celebrar a ocasião. O período de composição, no entanto, foi conturbado; Beethoven batia o ritmo no chão de sua casa, incomodando os vizinhos tarde da noite: “todos pensavam que ele estava louco, e de fato ele parecia um possuído”, diz seu amigo e primeiro biógrafo, Anton Schindler.
A Missa, finalmente dedicada ao arquiduque, foi completada apenas em 1822, estreando em São Petersburgo dois anos depois. Nas cartas trocadas entre Beethoven e Rodolfo percebemos as agruras do compositor: “Deus escutará minha prece [...] Porque eu o servi desde minha infância, confiei nele, fiz todo o bem que podia. [...] espero que o Todo-Poderoso não me abandone em meio a tantas tribulações”. Para compor a missa, Beethoven visita a biblioteca imperial e lá estuda as obras de Palestrina, a Missa em Si de Bach e O Messias de Haendel (também em Ré Maior, e citado em algumas passagens da obra); pede ao sobrinho que faça a escanção dos versos latinos, e estuda a liturgia da missa católica para, como escreve em seus cadernos, “escrever a verdadeira música sacra”. Em uma carta marcada por interesses comerciais, portanto não muito confiável, chega a dizer a um de seus editores que considerava a Missa Solene “sua obra mais bem realizada”. A partitura foi editada em 1827, após a morte do compositor, e ouvida em Viena apenas em 1845, em um concerto privado, como um mero Hino, pois a censura impediu que o termo “Missa” fosse usado em um contexto profano.
A obra segue o esquema tradicional da liturgia católica, composta por cinco partes: “Kyrie”, “Gloria”, “Credo”, “Sanctus-Benedictus”, “Agnus Dei”. Apesar da forma tradicional, a obra é eminentemente moderna, uma vez que o sentido musical da Missa enfatiza o destino do Homem diante de seu Criador, em vez de retratar uma criatura humilde e submissa. Daí o caráter dramático, uma característica do estilo heroico de Beethoven, que percorre toda a obra. Musicalmente, o drama se expressa nos súbitos contrastes de intensidade, nas sequências de modulações inesperadas, nas contundentes alterações rítmicas, na orquestração com uso de metais e percussão. O humano se impõe ao litúrgico até mesmo no texto, como no lamento expressivo do “Ah...” que antecede, abandonando a convenção, o retorno do miserere nobis.
No romance Doutor Fausto, de Thomas Mann, o professor Kretzschmar dá uma célebre aula sobre “Beethoven e a fuga”, comentando o fato de que os inimigos do compositor o consideravam incapaz de escrever uma boa fuga. De fato, há uma tensão real entre a forma rígida da fuga e o impulso beethoveniano à modulação distante e à liberdade na variação dos temas e motivos. Berlioz, por exemplo, considerava os améns fugados do “Gloria” como “contrassensos bárbaros”. Kretzchmar defende o mestre, ensinando ao jovem Leverkühn a distinção entre “épocas de culto e de cultura”. As fugas no final do “Gloria” e do “Credo”, e no hosanna do “Sanctus”, expressam menos a devoção do que a esperança que sobrevive no desespero. O “Credo”, enfático ao extremo, é testemunha desse esforço, pois a fé precisa ser justificada para além do ideal da harmonia celeste, em uma época que abandona a comunidade tradicional e caminha para a secularização.
O texto inteiro da Missa é sublinhado por essas analogias musicais, compartilhadas entre os solistas, a orquestra e o coro. O “Kyrie” é quase uma súplica; movimentos ascendentes e descendentes miram o Céu e a Terra no “Kyrie” e no “Gloria”; o unum Deum é marcado pela repetição das mesmas notas; os metais ressoam em fortíssimo quando ouvimos a palavra omnipotens e judicare do “Credo”; trêmulos percorrem o “Agnus Dei”; o ritmo se alarga no miserere nobis e a orquestra se perde em um organizado caos, antes do incisivo Dona nobis pacem. Mas nada é comparável à atenção que Beethoven dá a uma frase decisiva do “Credo”: Et homo factus est.
O homem, não Deus, está no centro da obra. Isso gera uma tensão importante entre a expressão dos momentos individuais e a construção do todo. Essas contradições, segundo Adorno, marcam todo o estilo tardio do compositor, no qual as obras se negam ao puro deleite, tornando-se rugosas, amargas e espinhosas. Lembremos que a Missa é contemporânea da criação das três últimas sonatas para piano, da Nona Sinfonia e do Quarteto Op. 127. Se a música de Beethoven, argumenta Adorno, havia consumado a aliança entre “humanismo e desmitologização”, a música liberada do culto acaba tornando-se objeto de culto. No caso da Missa, a contradição se aprofunda: o “caleidoscópio” de temas e a forma sacra arcaizante, com sua sobreposição de motivos, impede a “variação em desenvolvimento” tão típica do último Beethoven. Enredada nesse dilema, a Missa foge ao tom “cerimonial”, torna-se estranha ao seu objetivo e se aproxima do drama, revelando na música a alienação de uma humanidade que, abalada pela Revolução e pelas Guerras Napoleônicas, tem dificuldades para crer em um destino que lhe ultrapasse. Quando a Missa termina, com o tradicional Dona nobis pacem, a música de Beethoven implora pela paz, mas se dirige aos homens. Talvez essa seja a mensagem contida em sua famosa dedicatória: “Von Herzen, möge es wieder zu Herzen gehen” (Vinda do coração, que possa retornar ao coração).
Seria esse o sentido profundo de sua obra sacra mais importante, essa grandiosa e estranha Missa Solene? Sabemos, por meio dos cadernos de conversação, que sua amiga Johanna von Weissenturn lhe fez justamente essa pergunta, quando Beethoven começou a esboçar a composição, em 1819. Infelizmente, a resposta se perdeu. Dois séculos e meio depois, a obra soa ainda como um desafio, exigindo dos intérpretes, dos críticos e dos ouvintes um esforço para conciliar as diversas faces de Beethoven que ali se expressam e configuram: o homem, o músico, o revolucionário, o mito. No famoso quadro pintado por Joseph Karl Stieler [p.26], em 1820, o olhar firme de Beethoven nos encara, exigindo de nós alguma resposta, com a partitura da Missa em suas mãos.
JORGE DE ALMEIRA
Doutor em Filosofia e professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Autor de Crítica Dialética em Theodor Adorno: Música e Verdade nos Anos Vinte, Editora Ateliê, e vários ensaios sobre Música, Literatura e Filosofia.
GRAVAÇÕES RECOMENDADAS
Beethoven: Missa Solemnis
Margiono, Robbin, Kendall et al.
Coro Monteverdi
English Baroque Soloists
John Eliot Gardiner, regente
Archiv, 1991
Beethoven: Missa Solemnis
Söderström, Kmentt et al.
New Philharmonia Chorus
New Philharmonia Orchestra
Otto Klemperer, regente
EMI, 1966 / reed. Warner Classics, 2001
Beethoven: Missa Solemnis
Janowitz, Ludwig et al.
Wiener Singverein
Berliner Philharmoniker
Herbert von Karajan, regente
Deutsche Grammophon, 1966
Beethoven: Missa Solemnis
Aikin, Fink et al.
Arnold Schoenberg Choir
Concentus Musicus Wien
Nikolaus Harnoncourt, regente
Sony Classical, 2016
SUGESTÕES DE LEITURA
Theodor Adorno
Essays on Music
University of California Press, 2002
Translated by Susan H. Gillespie
André Boucourechliev
Beethoven
Éditions du Seuil, 1963
Carl Dahlhaus
Ludwig van Beethoven und Seine Zeit
Laaber-Verlag, 1987
[edição inglesa traduzida por Mary Whittall: Ludwig van Beethoven: Approaches to his Music
Clarendon Press, 1991]
|